Na terra de Kaiser foram as sombras que organizaram uma conspiração contra as luzes e o “ bom gosto “ nas artes. O mundo interior abrange uma complexidade sinistra que vara toda simetria do belo, exigindo na Alemanha do início do século XX uma experiência estética capaz de expressar o caos psíquico de uma sociedade em crise. Podemos definir o expressionismo como um movimento que priorizou a exteriorização da vida interior, ou seja a produção de imagens cuja poética revela diferentes estados psicológicos.
Não se trata de uma arte que busque o plano
psíquico em detrimento do plano físico, mas sim a afirmação de que como o
primeiro esta indissociavelmente ligado a essência da expressão. A obra
transcende a própria expressão do autor, ocorrendo portanto a autonomia de
elementos que adquirem expressão própria, uma dimensão física
independente, revelando sempre novas
possibilidades de interpretação do mesmo fenômeno estético.
Se a arte de matriz clássica buscou na
estrutura das obras a simetria que rejeita o abstrato, o expressionismo buscara
uma união entre o estrutural e o abstrato. Num mergulho em direção aquilo que é
o mais primitivo na arte , a dimensão obscura e alógica do homem são inerentes
as formas de expressão. Ao mesmo tempo como veremos mais adiante, a expressão
violenta do universo psicológico somou-se em alguns casos a uma crítica mais
objetiva a realidade social.
O expressionismo terá o seu florescer
primitivo e libertário durante a demoníaca primavera da cultura alemã nas
primeiras décadas do século XX. Sobretudo após a primeira grande guerra
(1914-18) as feridas do conflito mundial tornam-se de fato cicatrizes na
Alemanha. A crise econômica, os conflitos sociais, a rebelião contra o
autoritarismo e toda decomposição do
edifício da moral burguesa que Nietzsche ajudou a destruir, são simplesmente
canalizados na tonalidade sinistra de pinturas, esculturas, gravuras, poemas, peças e filmes. O cinema enquanto
objeto central de nossa análise será compreendido num tópico específico, sobre
tudo com o exemplo do filme O GABINETE DO DR CALIGARI, de 1919.
Antes de adentrarmos propriamente pelo
cinema expressionista, vamos compreender este movimento primeiramente nas
raízes estéticas de sua pré história e o significado de algumas de suas
manifestações no seu período áureo alemão.
1.1 A PRÉ HISTÓRIA
Se o poeta e crítico francês Charles
Baudelaire defendia em meados do século XIX que a arte não deveria submeter-se
a natureza mas sim buscar uma beleza bizarra, resultante de uma mudança
violenta da sensibilidade que subverte a natureza, a pintura de vanguarda
européia era a ilustração máxima desta idéia. O conceito de vanguarda originário de uma terminologia
militar, em que um pequeno grupo esta a frente numa campanha , envolve
artisticamente aquelas manifestações e os artistas que criam representações
sempre a frente do momento histórico em que se fazem enquanto representação.
Por volta de 1874 o movimento impressionista
deixou de ser vanguarda, tornando-se portanto digestivo para o público e a
crítica. Neste contexto pintores marginais radicalizam a revolução
impressionista numa direção plástica que dê conta de expressar as emoções sem
amarras no pincel. Estes artistas que boa parte
da historiografia da arte denomina como sendo pós-impressionistas,
acabam por superar este rótulo quando criam uma produção que ao ser a porta de
entrada para uma Europa em crise civilizatória , engedra a revolução
expressionista do início do século XX na Alemanha e no mundo.
Van Gogh, Munch, Gauguin e Cézane
desenvolvem com um assombroso vigor anárquico as cores violentas, as formas
distorcidas e angulosas do expressionismo. Era como se a alegria solar do
impressionismo cedesse lugar a uma noite infinita, com pinceladas de cores
atrevidas, povoada por figuras e formas assustadoras, assustadas, histéricas,
em transe..., deslocadas no tempo e no espaço.
Tomemos como exemplo a tela O GRITO (
0,91 X 0,73) de 1893. Nela Munch que na época vivia na Alemanha, revela quase
que um exorcismo solitário, um desespero impossível de ser estancado, um perene
desamparo. O quadro envolve uma figura humana que grita desesperadamente na
extremidade de uma ponte, a passos de distância a frente de dois passantes. A
figura expressa a partir de sua forma frágil e quase espectral um completo
desajuste social. O fundo e o plano praticamente tem seus limites desafiados
por uma distorção que somada a uma agressiva dimensão cromática possibilitam
uma sensação de contingência, como se o mundo perdesse o seu eixo e flutuasse
num pesadelo sem nexo.
A partir de O GRITO podemos refletir sobre a base plástica e o tipo de
sociedade que fariam nascer oficialmente o expressionismo. A partir da figura
central, aparentemente sem sexo definido, o pânico e o desamparo tornam-se
sentimentos pertinentes para uma Europa de graves contradições sociais. O
indivíduo encontra-se numa sociedade comandada pela burguesia, que se afirma e
espalha o seu poder pela Europa.
A revolução industrial não levou a uma
harmonia social mas ao contrário gerou no ventre das máquinas uma nova forma de
exploração social. Diante das contradições de classe o traçado artístico exige
desproporção, distorção, portanto formas que na lógica interna da pintura
expressam a crítica social. Trata-se de um protesto que inconsciente ou não,
expõe que o capitalismo é a própria crise da representação artística e portanto
faz-se necessária a exigência de uma nova representação, que enfoque o homem em
sua crise existencial e na sua ânsia por
liberdade.
Os centros urbanos ao concentrarem um número cada vez maior de pessoas,
cuja grande parte da população era destinada a trabalhar como mão de obra
operária para enriquecer industriais, gera na história o surgimento da massa anônima, ou seja indivíduos massificados, com a
identidade roubada pelo trabalho alienado e reíficados no processo de
exploração do capital. É neste sentido que Munch nos mostra a necessidade de
expor o indivíduo em angustia, na desolação de um labirinto urbano marcado pela
miséria e pela crise da própria arte.
A experiência estética renovada
revela nas artes em geral uma rebelião que ao estar enraizada no nível
econômico e político esta igualmente no traçado, nas cores escolhidas, nas
formas em convulsão... Ainda em O GRITO pode-se sem medo de cair em premonição,
detectar um indicativo social que antecipa o conflito mundial da primeira
grande guerra. O temor individual é também um temor social sobre uma cultura
que se auto destrói em nome do lucro.
Com a divulgação da obra dos “ pós
impressionistas “, proliferam-se pelos centros urbanos da Europa jovens
artistas sedentos por novas formas. Estes novos artistas influenciados pela
morbidez do decadentismo passam a ser notados por uma crítica aturdida.
Em 1905 em Paris a exposição
destes novos talentos recebeu o rótulo de Fauves (feras). Estes artistas abraçam
o rótulo e denominando-se fauvistas semeiam o espírito de vanguarda. O fauvismo
reuniu uma série de estilos individuais reunidos em torno de um mesmo principio
de revolução da forma de representação que prioriza a imagem filtrada pelas
emoções do artista.
Em Berlim a influência fauvista se fez
marcadamente na sociedade Die Brucke. Este grupo que na pintura contava com
nomes como Beckman e Ernest Nold, terá igualmente alcance literário com poetas
como Wedwkind. Fundado em 1905 o Die Brucke ira cunhar o termo expressionista
para definir sua visão estética (o termo
fora utilizado pela primeira vez em 1901 pelo pintor francês Julien Auguste
Hervé para definir seus próprios quadros).
Contemporâneo do futurismo na Itália e do cubismo na França, o
expressionismo embora de caráter internacionalista desenvolve-se enquanto uma
inovação cultural particularmente na Alemanha, influenciando grupos e artistas
individuais. Inerente ao espírito de vanguarda o expressionismo acaba por
ultrapassar o terreno da arte, sendo o ponto de vista libertário numa Alemanha
politicamente esquizofrênica.
1.2- O EXPRESSIONISMO ENQUANTO
RENOVAÇÃO CULTURAL
Antes da guerra tornar a carnificina uma rotina, pode-se
dizer que já configuravam-se duas Alemanhas: De um lado o espermatozóide de
Bismark proliferando o nacionalismo, a competição e o apetite de uma nascente e
voraz burguesia, amante da cultura helenística e de todo brio alemão traduzido
nas melodias de Wagner. Do outro lado havia a tradição da literatura
decadentista, da boêmia, do recente surgimento de pensadores rebeldes como
Nietzsche, do anarquismo e do marxismo que através do Partido social democrata
alemão coordenava o proletariado mais organizado da Europa. No desenho deste
rosto progressista estas influências não estavam sintonizadas ou reunidas num
projeto comum. Porém o desejo de repensar um novo sentido para o homem, fazia
com que em todos estes elementos estivesse presente uma poética da liberdade.
Na cultura alemã a poesia e as artes em geral eram o grande
meio de difusão de idéias, de
manifestações de emoções que estariam em confronto com o racionalismo de um
positivismo na filosofia e de um naturalismo na arte. Grande parte do desejo de
uma cultura libertária e da crise social do capitalismo que como já foi dito no
tópico anterior afetava a arte, foi canalizado de forma difusa no
expressionismo alemão. Se tomarmos como exemplo o poema expressionista FIM DO
MUNDO escrito em 1911 pelo poeta Hoddis, encontramos parte de uma Alemanha
revolucionária:
O CHAPÉU BURGUÊS ESTÁ VOANDO DE SUA AGUDA CABEÇA EM TODOS ARES ESTÁ
ECOANDO A GRITARIA
OS TELHADOS ESTÃO CAINDO E DESPEDAÇANDO-SE
E
NO LITORAL –LÊ-SE- ESTA SUBINDO PREAMAR
A TEMPESTADE AI ESTÁ , OS MARES
SELVAGENS SALTAM PARA A TERRA , PARA DESTROÇAR GROSSOS DIQUES.
A MAIORIA DOS HOMENS TEM UM DEFLUXO
OS
TRENS DE FERRO DESPENHAM-SE DAS PONTES.
As imagens do poema acima revelam um
clima de mudança... Uma tempestade que arranca a normalidade do chapéu burguês,
aproximando uma torrente de agitação e de
quebra das tradições dos telhados da cultura oficial. Era a invasão de
um mar que aponta para uma ausência de limites naturais e espirituais. Uma
declaração poética de que a Alemanha do decoro conservador era um trem a
despencar de uma ponte.
O expressionismo faz-se presente em
diversos ramos das artes e do pensamento. Durante o ano de 1918 que na história
política alemã entrou como sendo o de uma revolução proletária abortada, os
expressionistas de diversas facções e estilos apoiam a revolução. Porém, se era
fato que estes artistas ambicionavam uma revolução contra as formas estáveis da
cultura burguesa, buscando o invisível no visível, a realidade por trás da
falsa aparência, politicamente tratava-se de um movimento não unificado e
frouxamente reunido em princípios comuns. Embora partilhassem de um desejo
comum de rebelião e de ruptura, o expressionismo não era um movimento
programático como seria por exemplo o surrealismo na França.
Em meio a uma rebeldia difusa, sem
objetivos claros, os expressionistas no que refere-se ao seu posicionamento
político variavam entre a extrema esquerda, entre apolíticos formalistas e
entre a extrema direita. Esta última posição, manifesta em raras exceções como
a do pintor Nold( artista de uma obra preciosa mas cuja conduta pessoal e em
certo sentido plástica, revela um cristão racista e conservador) não deixa de
ser irônica e desproposital : Afinal as concepções estéticas da extrema direita
que esculpiam o projeto político e cultural do nazismo, encaixam-se num
realismo monumental e sentimental, ancorado na cultura greco romana; e portanto
avessos a arte de vanguarda, tachada por eles como sendo “ arte degenerada “.
Durante os dias de luta em 1918, uma série
de artistas expressionistas compõem um circulo revolucionário nas artes. Surgem
dois grupos o Novenberguppe e o provocativo Arbeistrant fur kunst. O primeiro
marcadamente envolvendo artistas de esquerda reunia segundo as linhas de seu
manifesto redigido em dezembro de 1918 “ aqueles que dizem sim a tudo que está
brotando e se formando “. Estes ainda
conclamavam que “ enquanto
revolucionários do espírito, deveriam na urgência do momento organizar uma
frente reunindo expressionistas, futuristas e cubistas “.
Em ambos os grupos notamos o empenho pela
disseminação de uma arte que desse conta seja no plano formal ou no conteúdo
das necessidades revolucionárias na cultura e na política. George Grosz em suas
gravuras produzia uma espécie de propaganda selvagem de traçado expressionista-
satírico, em que parodiavam-se gordos industriais e os mestres da guerra. As
fotografias de Otto Dix exalavam com brutalidade a beleza do mundo marginal
enquanto força subversiva: Prostitutas, travestis e operários compunham o
organismo das fotos que anunciavam a revolução e o fim dos valores burgueses.
Kathe Kollwitz foi quem melhor desenvolveu
a mensagem proletária na visão expressionista : Através de suas esculturas e de
seus trabalhos gráficos a artista expunha a melancolia das mães trabalhadoras,
das crianças famintas, a exploração capitalista, a crueldade da guerra e o
poente da revolução, que num adeus de cores vazias acenava para Rosa Luxemburgo
e Karl Libknecht ( brutalmente assassinados pelas forças da burguesia). O que
torna Kollwitz genial, é sua capacidade em alinhar a natureza formal do
expressionismo com uma arte de combate. A gravurista alemã captava a dor nascida
de uma experiência social, real, para dar tratamento pessoal as formas dos seus
trabalhos. Desta maneira potencializa-se o efeito político sem recorrer ao
recurso da propaganda.
A falta de sustentabilidade ideológica e
clareza de objetivos comuns entre muitos artistas, fizeram com que esta frente revolucionária não ultrapassasse o doce e fugaz terreno do idealismo. Mas se
não tinham um projeto político comum, os expressionistas em termos puramente
artísticos revelavam uma notável diversidade estilística.
O que fica claro sob o ponto de vista histórico é que independentemente
do nível de organização política dos expressionistas, o movimento foi uma
experiência revolucionária, um desejo de
transformação das estruturas quer mentais, quer estéticas. Sua força política
estava em sua força estética : Enquanto alguns tematizavam a realidade social e
outros mergulhavam num abstracionismo sombrio, em ambos encontra-se a
necessidade de transformar a percepção e abordar temas incômodos da alma humana.
Isto nasce antes da guerra e potencializa-se durante os anos subsequentes a
ela.
O inconformismo político nos artistas foi
ressaltado com a destruição e a derrota alemã na guerra. Iniciava-se a
república de Weimar( 1919-33) que apesar de
todas as suas contradições políticas e grave crise econômica fora um
terreno de liberdade total na cultura.
Os estilhaços das bombas proporcionaram algo já encubado em setores
avançados da cultura alemã: Uma explosão pacifista, antimilitarista, antinacionalista
e de horror absoluto as tradições. Os fantasmas eram exorcizados com o ritmo
alucinante do jazz, com a permissividade sexual, com o excesso de álcool e
drogas, com o laboratório de agitação cultural dos cabarés, com a utopia da
escola de designer da Bauhaus em que utensílios cotidianos eram transformados
em obras de arte que subvertiam a rotina ( dentro de uma proposta de
estetização da vida), etc...
Pintores faziam poesia e vice versa num
clima de ruptura cultural que somava ainda dança, teatro, escultura, cartoons,
gravuras e como veremos num tópico especifico o cinema. Pintores como Klee,
Kandinsky e Beckman ( os dois primeiros ligados a Bauhaus) buscavam em suas pesquisas revelar a magia
macabra do pós guerra. Sendo o expressionismo um movimento cuja natureza
estética não dizia respeito a um único método e uma única mensagem, o
sofrimento e a angustia existencial nascidas da guerra e da miséria social
levaram a um acentuamento do lado sórdido e sombrio da vida ( sob pontos de
vista muito particulares).
Talvez o trabalho de Beckman seja aquele que realmente presencie estas
mudanças através dos nervos das formas e das cores. Nas obras deste período
encontramos uma presença mista de medos, paranóias, neuroses e conflitos existenciais. O artista que antes da guerra
declarava-se um apolítico, passa a sentir-se espiritualmente responsável em
retratar a crise existencial da sociedade alemã.
O teatro expressionista será por excelência um gênero de inconformismo
político e de rebelião contra as normas sociais. Os teatrólogos recusando todas
as estruturas cênicas do teatro realista e pouco importando-se com a audiência
e a clareza, possibilitavam ao ator uma liberdade total de interpretação.
Desprendendo-se das algemas do naturalismo era trazido para a atuação o tom
declamatório e o fim da identidade individual pela identidade social dos
personagens: Estes eram chamados como a mãe, o soldado, a garota, etc. Esta
universalidade vinha acompanhada de uma agressividade e de uma mensagem direta
por mudanças sociais.
A polarização política impulsiona a luta de classes para o interior dos
teatros. Durante a estréia da peça GUILHERME TELL , obra consagrada de Shiller
e levada aos palcos em 1919 por Jessner, os conflitos sociais vieram a tona. O
teatrólogo alterou o tom patriótico do texto original transpondo através de uma
cenografia expressionista ( e que portanto exigia a participação da imaginação
do espectador ) o ultraje do assassinato dos principais lideres da fadítica
revolução do ano anterior. A platéia claramente identificada entre adeptos da
extrema esquerda e da extrema direita esquentaram o clima desta noite verdadeiramente expressionista.
Na Alemanha os homens de teatro que não compactuassem com o ideário
conservador da cultura clássica eram essencialmente expressionistas de
esquerda. Do celeiro cênico expressionista surgiram nomes como Bertolt Brecht,
que teve presença marcante no grupo Novenberguppen. Nesta sua primeira
fase marcada pela influência expressionista e portanto anterior ao
teatro dialético que desenvolveria na década de trinta, Brecht produz uma
dramaturgia de rebelião, que carrega nos atos a crítica e o desprezo a cultura burguesa. Embora em varias
declarações Brecht dizia repudiar o subjetivismo do expressionismo, é inegável
a presença deste em suas primeiras peças.
Um grande exemplo desta produção de Brecht foi a peça BAAL de 1919.;
nela o personagem central é um jovem amoral que numa roda de embriaguez e sexo
livre usa e despreza as mulheres. Isto remete a uma crítica as mulheres submissas, e ao mesmo tempo a renúncia da monogamia ,
que por sua vez fundamenta a família patriarcal. O texto é povoado por cores
sombrias que destilam-se por um céu enigmático, como se ele portasse dentro de
si um tempo de tensões sociais, instável como a própria economia que se refazia
da guerra. O personagem Baal é egoísta exatamente porque expressa uma sociedade
fundada no egoísmo.
Baal é quase um animal que busca a liberdade e que por isso é
marginalizado. Ele canta, brinca, embriaga-se, não produz riquezas... Trata-se
do pesadelo burguês personificado num jovem que entre o êxtase e a melancolia
torna-se a alegoria da república de Weimar: Um período em que alternava-se
entre o niilismo e as incertezas
revolucionárias, como uma noite interminável de orgias e vícios, sem data para
o amanhecer .
Infelizmente a noite seria prolongada e
legitimada mas pela escuridão autoritária do partido nazista , que em 1933
trouxe Adolph Hitler como Chanceler da
Alemanha. Dava-se início a maior manifestação de barbárie da história humana.
Em território alemão era o fim da era expressionista.
Em síntese podemos dizer que o expressionismo em sua diversidade
estilística e ideológica foi um movimento de rebelião contra a figura da
autoridade. Podemos ainda afirmar que a partir de uma raiz psicanalítica o
confronto entre as figuras do pai e do filho simbolizam a própria realidade política da Alemanha
através da atmosfera expressionista: Ou seja o filho, o modernismo, o
socialismo, a boêmia e a liberdade sexual em choque com o pai, o nacionalismo,
o militarismo, a família, a guerra e a religião.
1.4- O GABINETE DO DR CALIGARI
Exibido em Berlim durante o mês de
fevereiro de 1920, o filme O GABINETE DO DR CALIGARI dirigido por Robert Wiene, foi a transposição
cinematográfica da atmosfera gótica que escorria pelas ruas sinistras dos
centros urbanos da Alemanha. Ao lado de NOSFERATU de Murnuau e da primeira
safra cinematográfica de Fritz Lang, Caligari proporciona ao veículo
cinematográfico o seu devido potencial estético.
Ou seja, este filme é um notável produto de uma consciência em que o
cinema é instrumento de expressão e de
reflexão visual da arte de vanguarda. Assim como as artes plásticas, a
literatura e o teatro, o cinema torna-se um meio privilegiado para a criação
artística, carregando na imagem em movimento a ousadia do espírito modernista.
O cinema expressionista que vigorou na Alemanha até o início da década
de trinta, tinha seu referencial estético na literatura e nas artes plásticas.
As estórias que os filmes expressionistas contam possuem uma dimensão
fantástica, emocionalmente intensa, que por sua vez acabam por subverter a
previsibilidade do cotidiano alienado.
As imagens revelam uma alteração da suposta normalidade que cerca a
realidade racional: a arquitetura de casas, as paisagens e os objetos são
deformados e acabam por transmitir uma atmosfera ao mesmo tempo onírica e
sombria. Os atores desempenham numa extraordinária técnica de interpretação:
Rostos em estado de convulsão, olhares diabólicos e gestos exageradamente
soturnos, formam parte integrante de uma fotografia mágica.
O ideário expressionista que priorizava a realidade interior em
detrimento de uma realidade opressora, marcada pela exploração social,
encontrou no cinema um meio preciso. A recusa da objetividade fazia com que o
cineasta manejasse a câmara como a pena de um poeta, estabelecendo uma defesa
sobre a validade da realidade subjetiva. O exarcebamento desta subjetividade
esta presente também na cenografia de penumbras, em ruas misteriosas, em
objetos assustadores e numa completa distorção que prioriza os mistérios e o
lado selvagem da vida.
O GABINETE DO DR CALIGARI apresenta todas estas características acima,
embora como veremos mais adiante com uma comprometedora contradição ideológica.
Críticos e historiadores em geral consideram Caligari como sendo o filme que
inaugurou o gênero do horror no cinema. Isto não é para menos já que as sombras
macabras do filme percorrem todo o sistema nervoso do espectador. Com exceção
do início e do fim, o filme é visto pelo olhar de um louco. A alucinação do
personagem torna-se graças ao poder expositivo do cinema um frasco aberto de
delírios, acessível a todos.
A derrota alemã na guerra encontra seu flagelo nas distorção formal de
Caligari. O filme pode ser compreendido como uma espécie de premonição
cinematográfica, uma captação visual do inconsciente coletivo : DR Caligari
induz um sonâmbulo chamado César a cometer assassinatos. Trata-se de um clima
de hipnose, no qual a massa do povo alemão iria aderir de forma hipnóticamnte
coletiva ao nazismo de Hitlter. O DR Caligari é a personificação pré-metafórica
do Funher.
A estória do filme porém, consistiu na mudança do roteiro original. A
versão cinematográfica que se consagrou, alterou por completo a mensagem da
primeira versão escrita. Concebido logo após a guerra por dois jovens
escritores, a adaptação de Robert Wine irá modificar todo corpo ideológico do
texto.
O theco Hans Janowitz e o austriaco Carl Mayer, eram dois escritores que
travaram uma profunda amizade em Berlim. Compartilhavam do fascínio pelo
expressionismo e ao mesmo tempo do repúdio pela guerra e pelo autoritarismo. A
partir de um posicionamento pacifista, ambos escrevem uma estória voltada para
o cinema em que suas paranóias e temores noturnos assumem a forma do diabólico DR Caligari. O misterioso DR
exibe o sonâmbulo César como atração na feira de uma cidade. O jovem sonâmbulo
de vinte e três anos adivinha o futuro.
A narrativa da estória envolve um estudante chamado Francis. Este fica
intrigado com uma série de assassinatos, sobretudo com o do seu amigo Alan, que
após a uma visita ao gabinete de atrações do DR Caligari, recebeu pela
boca do sonâmbulo a notícia de que
viveria até o amanhecer. Francis suspeita que Caligari e seu sonâmbulo sejam os
responsáveis pelo assassinato de seu amigo e dos demais.
O jovem Francis espiona a carroça de Caligari durante a noite, e fica
aliviado ao notar que César dormia numa caixa. Porém, enquanto Francis se
diverte no parque de diversões durante uma noite, César seqüestra Jane, a
namorada de Francis. Inicia-se uma perseguição a César que arrasta Jane por
entre colinas irreais e viadutos vertiginosos. O sonâmbulo abandona Jane e
durante a fuga falece inesperadamente. Quando a polícia investiga a caixa na
carroça de Caligari encontram um boneco. A verdade vem a tona: Caligari
hipnotizava César e o mandava executar assassinatos.
Caligari despista a policia e abriga-se num asilo de loucos. Francis que
o havia seguido até o hospício, tem uma revelação surpreendente: O diretor do
asilo e o psicótico Caligari são a mesma pessoa. Enquanto Caligari dorme é
feita uma investigação e descobre-se que
o diretor do hospício ficara obcecado com a história de Caligari, um
saltimbanco do século XVIII , que hipnotizava o seu médium César e o induzia a
cometer crimes. O diretor apropria-se da identidade do personagem histórico e
utiliza um sonâmbulo do hospício para
saciar um desejo psicótico.
Numa emboscada , Francis mostra o cadáver de César ao diretor do
hospício, buscando arrancar deste último uma confissão. O diretor
descontrola-se e acaba sendo colocado numa camisa de força, numa irônica
alteração de papéis: A sua própria instituição o pune.
Está era a estória original... Porém, quando Eric Pommer influente
produtor da nascente indústria cinematográfica alemã escolhe o texto para que o
diretor Robert Wine o dirija, Wine altera toda a mensagem da estória: O filme
inicia-se e termina no asilo, enquanto que o corpo narrativo é transcorrido
segundo o olhar de Francis. O que torna evidente ao longo do filme segundo o
seu início e o seu fim é que Francis é louco, assim como Jane. Caligari seria apenas um produto de seus
delírios. O diretor do hospício por sua vez é um bom homem, que irá internar e
cuidar do jovem perturbado.
Está alteração esta longe de ser apenas uma simples licença poética do
cineasta. Ela é antes de tudo uma escolha ideológica que entra em conflito com
a visão política dos autores. Em cinema embora não haja nenhuma regra
estabelecida para que o diretor siga fielmente o roteiro, afinal o roteirista e
o diretor podem ter olhares diferentes sobre um mesmo texto, o que ocorre em Caligari é um ocultamento da natureza
contestatória da idéia original.
Para Janowtz e Mayer , Caligari e
dos demais personagens são figuras alegóricas que expressam um protesto contra
a figura da autoridade que mergulhou a Alemanha na desgraça e na miséria
social. O DR Caligari metaforiza está autoridade que é portadora de insanidade
e de brutalidade. Os assassinatos funcionam como referências para simbolizar a
guerra ou o assassinato em massa , promovido pelas formas de autoridade.
A hipnose de Caligari metaforiza um instrumento psicótico utilizado por
lideres políticos, que estando submetidos aos interesses da burguesia, enviam
jovens “ hipnotizados “ pelo militarismo
para o matadouro dos campos de batalha. A juventude vitima do poder encontra-se
em César, Francis , Alan e Jane . César é o jovem manipulado por
interesses que liquidam os seus semelhantes, ao passo que Francis representa a
capacidade de contestar e de denunciar a autoridade enlouquecida com seus
desejos de destruição social.
Uma outra alegoria que merece destaque é o parque de diversões. O que
aparentemente pode ser um entretenimento vazio, para os autores do filme é um
grande espaço de libertação, um desejo
anárquico por diversão. A vida revela o seu sentido no gozo da diversão e não
numa realidade externa ao parque, marcada pela opressão social. Este mecanismo
expressionista de priorizar a internalidade em detrimento da externalidade
intolerável, não deixa de revelar uma certa ingenuidade romântica dos
escritores, uma espécie de fuga, um abrigo contra as sombras diabólicas que
rondavam a Alemanha.
A imagem que adquire uma dimensão coletiva através do cinema, precisa
ser analisada no seu poder alegórico que conscientemente ou não toma uma
posição perante a realidade. Segundo os dois jovens roteiristas a estória de
Caligari simboliza aquele momento histórico da Alemanha. O texto é um gesto de
protesto que deveria ser traduzido na linguagem cinematográfica.
Mas para Robert Wine e para os interesses políticos do estúdio, fora
muito mais convincente a versão de que o personagem Francis era um jovem
perturbado. Enquanto isso, o DR em sua posição de autoridade médica, cientifica
e portanto moral , um homem capacitado para “ cuidar “ de jovens incômodos.
Ora trata-se de um processo de repressão que esta simbolizado na idéia
do hospício. A boêmia e os parques de diversão que afetavam a vida da juventude
, estavam por arrancar a sanidade mental; seria preciso que a autoridade
intervisse com seus instrumentos coercitivos. Neste sentido, paradoxalmente o
filme produz uma ética anti expressionista, em que a realidade externa da
autoridade é chamada a combater ´´ os delírios ´´ da realidade subjetiva.
Toda esta reflexão sobre a visão reacionária de Wine, não altera a
natureza expressionista do filme, que se manifesta muito mais no sentido
plástico : Cenografia macabra, sombras, variação de luz que sob a base da
imagem em preto e branco possibilita diferentes efeitos de cor. Somam-se ainda
figuras distorcidas e maquiagem exagerada, tudo num clima infernalmente
cartunesco.
Por fim, O GABINETE DO DR CALIGARI representa inquestionavelmente o
ponto mais alto do expressionismo no cinema. Questões ideológicas a parte, ele
é junto a insolência de artistas revolucionários e da boêmia infinita, um
retrato orgânico da República de Weimar.
Orestes Toledo/Afonso Machado
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