terça-feira, 31 de julho de 2012

Manifesto por um Teatro Abortado




Na época de confusão em que vivemos, época toda carregada de
blasfêmias e das fosforescências de uma renegação infinita, onde todos
os valores tanto artísticos quanto morais parecem dissolver-se em um
abismo do qual nada em nenhuma das épocas do espírito pode dar uma
idéia, tive a franqueza de pensar que eu poderia fazer um teatro, que
eu pelo menos poderia encetar esta tentativa de dar de novo vida ao
valor universal do teatro, mas a estupidez de uns, a má fé e a ignóbil
canalhice de outros me dissuadiram para todo o sempre.
Dessa tentativa permanece ante meus olhos o seguinte Manifesto:

Aos... de janeiro de 1927 o teatro A... dará sua primeira
representação. Seus fundadores tem a consciência mais viva da espécie
de desespero que o lançamento de semelhante teatro supõe. E não é sem
um tipo de remorso que eles resolvem faze-lo. Não é preciso que alguém
se engane a esse respeito. O teatro A... não é um negócio, ninguém
duvida. Mas ele é, ademais, uma tentativa pela qual certo número de
espiritos jovens arriscam tudo. Nós não cremos, nós não cremos mais
que haja alguma coisa no mundo que se possa chamar de teatro, nós não
vemos a qual realidade semelhante denominação se dirige. Nós estamos,
ninguém sonharia nega-lo, do ponto de vista espiritual, numa época
crítica. Nós cremos em todas as ameaças do invisível. E é contra o
invisível mesmo que nós lutamos. Nós estamos inteiramente dedicados a
desenterrar um certo número de segredos. E nós queremos justamente
trazer á luz este montão de desejos, de sonhos, de ilusões, de crenças
que levaram a esta mentira na qual ninguém mais acredita, e que chamam
por zombaria, parece: O teatro. Nós queremos chegar a vivificar um
certo número de imagens, mas de imagens evidentes, palpáveis, que não
estejam manchadas de uma eterna desiluzão. Se nós fazemos um teatro
não é para representar peças, mas para conseguir que tudo quanto há de
obscuro no espírito, de infurnado, de irrevelado, se manifeste em uma
espécie de projeção material, real. Nós não procuramos denunciar como
isto se produziu até aqui, como isto sempre foi o fato do teatro, a
ilusão daquilo que não existe, mas ao contrário fazer aparecer ante os
olhares um certo número de quadros, e imagens indestrutiveis,
inegáveis, que falarão ao espírito diretamente. Os objetos, os
acessórios, os próprios cenários que figurarão no palco, deverão ser
entendidos não pelo que representam , mas pelo que são na realidade. A
encenação propriamente dita, as evoluções dos atores, não deverão ser
consideradas senão como signos visiveis de uma linguagem invisível ou
secreta. Não haverá um só gesto de teatro que não carregará atrás de
si toda a fatalidade da vida e os misteriosos encontros dos sonhos.
Tudo o que na vida tem um sentido augural, divinatório, corresponde a
um pressentimento, provém de um erro fecundo do espírito, tudo isto
será encontrado em um dado momento sobre o nosso palco.
Compreende-se que nossa tentativa é tanto mais perigosa quanto
mais ela enxameia de ambições. Mas é preciso efetivamente que as
pessoas se compenetrem desta idéia, de que nós não temos medo do nada.
Não há vazio na natureza que não julguemos o espírito humano capaz de
preencher em um dado momento. Vê-se que terrível tarefa nós nos
atiramos; nós visamos nada menos que remontar ás fontes humanas ou
inumanas do teatro e ressuscita-lo totalmente.
Tudo que pertence á ilegibilidade, á fascinação magnética dos
sonhos, tudo isto, estas camadas sombrias da consciência que são tudo
o que nos preocupa no espírito, nós queremos vê-lo radiar e triunfar
em um palco, prontos a perder a nós mesmos e a nos expor ao rídiculo
de um colossal fracasso. Nós não temos medo tampouco desta espécie de
parti pris que nossa tentativa representa.
Nós concebemos o teatro como uma verdadeira operação de magia. Nós
não nos dirigimos aos olhos, nem á emoção direta da alma; o que nós
procuramos criar é uma certa emoção psicológica onde as molas mais
secretas do coração serão postas a nu.
Nós não pensamos que a vida seja representável em si mesma ou que
valha a pena arriscar a sorte neste sentido.
Rumo a este teatro ideal, nós avançamos nós mesmos como cegos.
Nós sabemos parcialmente o que queremos fazer e como poderíamos
realiza-lo materialmente, mas temos fé em um acaso, em um milagre que
se produzirá para nos revelar tudo o que ignoramos ainda e que dará
toda a sua vida superior profunda a esta pobre matéria que nós nos
encarniçamos em amassar.
Fora portanto da maior ou menor consecução de nossos espetáculos, os
que vierem a nós compreenderão que participam de uma tentativa mística
pela qual uma parte importante do domínio do espírito e da consciência
pode ser definitivamente salva ou perdida.


Antonin Artaud, 1926.

PS: Estes revolucionários de papel de bosta que gostariam de nos levar
a crer que fazer atualmente teatro é ( como se isto valesse a pena,
como se isto pudesse ter importância, as letras, como se não fosse
alhures que nós desde sempre fixamos nossas vidas), esses velhacos
sujos gostariam de nos levar a crer que fazer atualmente teatro é uma
tentativa contra-revolucionária, como se a Revolução fosse uma
idéia-tabu e na qual fosse desde sempre proibido tocar.
Pois bem, eu não aceito idéia-tabu.
Para mim há muitas maneiras de entender a Revolução e dentre estas
maneiras a comunista me parece de longe a pior, a mais reduzida. Uma
Revolução de preguiçosos.Não me importa absolutamente, eu o proclamo
bem alto, que o poder passe das mãos da burguesia para as do
proletariado. Para mim a Revolução não está aí. Ela não está em uma
simples transmissão de poderes. Uma Revolução que pôs na primeira
fileira de suas preocupações as necessidades da produção e que devido
a este fato se obstina em apoiar-se no maquinismo como um meio de
facilitar a condição dos operários é para mim uma Revolução de
castrados. E eu não me alimento desta erva aí. Eu acho, ao contrário,
que uma das razões principais do mal de que sofremos reside na
exteriorização desenfreada e na multiplicação prolongada ao infinito
da força; ela também reside em uma facilidade anormal introduzida nas
trocas de homem para homem e que não deixa mais ao pensamento o tempo
de retomar raiz nele mesmo. Estamos todos desesperados de tanto
maquinismo em todos os niveis de nossa meditação. Mas as verdadeiras
raizes do mal são mais profundas, seria preciso um volume para
analisá-las. Por hora limitar-me-ei a dizer que a Revolução mais
urgente a realizar está em uma espécie de regressão no tempo. Que nós
voltemos a mentalidade ou simplesmente aos hábitos da vida da Idade
Média, mas realmente e por uma via de metamorfose nas essências, e
julgarei então que teremos efetuado a única Revolução de que vale a
pena que se fale.
Há bombas a pôr em alguma parte, mas na base da maioria dos hábitos
do pensamento presente , europeu ou não. Por estes hábitos, os
Senhores Surrealistas estão atingidos muito mais do que eu lhes
asseguro, e o respeito deles por certos fetiches feitos homens e o
ajoelhamento diante do Comunismo é a melhor prova.
É certo que se eu tivesse feito um teatro, aquilo que eu teria
feito estaria tão pouco aparentado com o que se tem o hábito de chamar
teatro quanto a representação de uma obscenidade qualquer se assemelha
a um antigo mistério religioso.


Antonin Artaud, 1927.


terça-feira, 24 de julho de 2012

COMPREENSÍVEL PARA AS MASSAS : Notas sobre o Construtivismo russo



O furacão de outubro trouxe no centro de seu espectro vermelho uma tempestade revolucionária na política e uma avalanche experimental na cultura. A Revolução de 1917, momento ímpar da utopia do século XX, revelou que a histórica virada de mesa dos bolcheviques exigia uma transformação cultural, a qual seria encabeçada pelas vanguardas artísticas.

  Os principais movimentos de vanguarda que aderiam fervorosamente a Revolução, empregavam um sonho que nutria-se no útero estético modernista para nascer numa profunda transformação do modo de vida da sociedade russa. Tal sonho era uma exigência que vinha desde o início da década de dez, portanto anterior a Revolução, e era empregada sobretudo pelos cubofuturistas.

  No projeto revolucionário da primeira geração de artistas soviéticos, a plena transformação social seria incompleta se restrita ao âmbito econômico da coletivização dos meios de produção. Seria preciso revolucionar também os valores culturais, através de formas de representação que invadissem o cotidiano do proletariado afim de promover uma arte ligada a vida das massas.

  A arte de vanguarda partilhava de uma utopia em que a política e a arte eram indissociáveis no pensamento e na criação de uma realidade revolucionária, portadora de um novo estágio da História humana. E será neste sentido que o construtivismo irá representar a expressão máxima de um projeto estético que redefinia a função social da arte.

  Execrando o Realismo e toda a herança artística que expressava a cultura burguesa, os construtivistas se lançam num conjunto de linguagens artísticas para buscar na precisão da forma e na objetividade antisentimentalóide, uma arte desilitizada , acessível e conectada com o cotidiano das massas. Trata-se de uma busca concreta por uma estetização da vida, um projeto de sociedade em que o sentido prático da arte dissemine a Revolução através da percepção.

   Porém, se a vanguarda no contexto político e no contexto artístico empenharam-se na destruição do modo de vida burguês,  a partir de 1925 as garras de ferro da burocracia estalinista passam a esboçar um desencontro histórico. Trata-se do início de uma política contra revolucionária, a qual se consolidaria definitivamente na cultura em 1934. Ou seja todo o empenho dos artistas de vanguarda se esvai pelo ralo da burocracia. Surge uma forma servil de arte: O Realismo socialista, ou seja uma arte que funciona enquanto superestrutura ideológica para um Estado despótico. Era o poente da ousadia estética, da inteligência e da utopia na URSS.

  Ergue-se um período sombrio em que abaixo do busto de Stálin ouvia-se o disparar da bala que Maiakóvski cravara no seu próprio peito. Um momento em que o Kremilin emudecia-se diante do desaparecimento de Meyerhold nos campos de concentração, e que as tesouras andavam a espreita nos estúdios para cortarem a criatividade do cinema de Eisenstein  e de Vertov.

   Estando Eisesntein e Vertov entre os grandes gênios da História do cinema, será enfatizado mais adiante (em suas particularidades teóricas )o pensamento cinematográfico de ambos durante os anos do construtivismo russo.

   Mas antes de  adentrarmos pelo pensamento construtivista e pelo debate cinematográfico soviético, vejamos um pouco das origens do construtivismo através do futurismo russo.



1.1-         O ALICERCE FUTURISTA:

   Pode-se dizer que a raiz do pensamento de vanguarda na Rússia está no futurismo. É curioso como o futurismo nascido na Itália pelas mãos de Marinetti adquire diferentes roupagens ideológicas nos diversos países em que se fez presente. O MANIFESTO DO FUTURISMO redigido  por Marinetti e lançado em 1909 traz na estrutura de uma declaração política (isto é o manifesto) um chamado de ruptura estética, uma ode a sociedade da técnica e a diluição entre as fronteiras da ação artística e da ação política.

   Porém a vinculação ideológica do futurismo varia : Na Itália apresenta uma origem anarquista que lamentavelmente adquire uma posterior ligação com o fascismo;  no Brasil o futurismo torna-se expressão de um pensamento liberal e de um desejo de modernidade  que rompe com esclerosados paradigmas estéticos. Na Rússia o futurismo liga-se ao socialismo revolucionário de Lenin. Ao mesmo tempo esta ligação com a visão bolchevista correspondia a uma radicalização interna do futurismo russo. Vejamos através da poesia dois exemplos ideológicamente contrastantes dentro do futurismo russo:



A ORQUESTROMELODIA FLUTUAVA RÓSEA

SOBRE O VELUDO BRANCO DO FOYER

A CONDESSA COM GRAÇAS DE LIBÉLULA

MASTIGAVA CHOCOLATE CAILLER

                                                        Ígor Sievieripanin, 1911



...SABEM VOCÊS , INÚTEIS DILETANTES

QUE SÓ PENSAM EM ENCHER A PANÇA E O COFRE

QUE TALVEZ UMA BOMBA NESTE INSTANTE

ARRANCA AS PERNAS AO TENENTE PIETROV?...

VOCÊS , GOZADORES DE FÊMEAS E DE PRATOS

DARIAM A VIDA POR SEUS BACANAIS?...

...MIL VEZES NO BAR  ÁS PUTAS

FICAR SERVINDO SUCO DE ANANAS...

                                                             Vladmir Maiakóvski, 1915.



  A partir destes dois poemas, ambos de procedência futurista, podemos verificar as discrepâncias estéticas e temáticas no interior do movimento.

   No poema de Sieveripanin encontramos um inventivo jogo de imagens que traz uma modernidade desconectada dos problemas desta. Uma condessa comendo chocolates, em meio a veludo branco, numa atmosfera delicada em que as letras macias tornam-se uma bolha alienante em meio a uma Rússia marcada pela agitação política do movimento operário. Trata-se da tendência do grupo dos ego-futuristas que buscavam abordar a modernidade dentro de uma proposta formalista e de isolamento.

   Já no caso de Maiakóvski, a agressividade inerente ao futurismo converte-se em um grito de protesto contra a classe dominante. Trata-se da tendência do grupo dos cubofuturistas, os quais abraçavam com violência um projeto de transformação da cultura russa. Evidentemente que as diferenças entre os ego e cubofuturistas  se davam tanto a nível estético quanto político: Enquanto os primeiros ambientavam os salões elitistas de Petrogrado, transformando o futurismo em futilidade, os segundos são a simbiose eletrificada de Moscou, encarnando com plenitude a agitação futurista enquanto instrumento artístico que ligava-se ao clima revolucionário do bolchevismo e dos soviets.

  Façamos a partir de um contraponto visual o desagradável  impacto dos cubofuturistas na  ala conservadora da inteligentísia russa: De um lado uma Rússia em grande parte semi feudal, com poucos  centros urbanos, nos quais operários eram explorados e literatos e intelectuais beiçudos de salão, serviam de superestrutura para uma situação de conformismo e de perpetuação da miséria. Do outro lado um pequeno grupo de jovens raivosos, em estado vulcânico, portanto blusas amarelas, com listras extravagantes, gravatas escandalosas, desenhos no rosto, maquiagem insolente e uma bravura que não poupava nenhum literato.

    Maiakóvski, burkiuk, Khlebnikov e outros jovens insolentes, utilizavam a poesia e o escândalo para reunir um clima de inovação estética que envolvia o teatro, as artes plásticas e como veremos o cinema. O manifesto BOFETADA NO GOSTO PÚBLICO de 1912, é um brilhante exemplo do espírito do grupo. Logo no início do manifesto os cubofuturistas se autoproclamavam a corneta que vem acordar uma cultura ainda em sono feudal.: “ Somente nós somos o rosto do nosso tempo. A corneta do tempo ressoa na nossa arte verbal “.  Era como se grupo chamasse o país para um revolvimento cultural e utilizando a bofetada enquanto célebre metáfora futurista, agredir a cultura oficial das elites.

  As atividades dos cubofuturistas envolviam pequenas turnês pelas províncias da Rússia.  Numa fusão entre sarau, conferência, sketch e insulto, o grupo invadia cafes, cabarets e teatros, afim de anunciar que sua Revolução estética era parte integrante de uma ampla Revolução que estava a caminho; e realmente estava... Quando os Bolcheviques lideram a insurreição de outubro, os cubofuturistas se aliam a Lenin e posteriormente se engajam na guerra civil contra os Brancos.

     Naqueles dias de frio e fome pelos quais a Rússia passava, um admirável esforço foi empreendido por uma geração de artistas e intelectuais que produziam aquilo que  era chamado de arte de esquerda. Trata-se de um empenho coletivo em que artistas de vanguarda produziam cartazes de guerra, poetas inflamavam a causa proletária, peças teatrais eram realizadas nos front de batalha,  e círculos de cursos e debates inflamados sobre arte revolucionária eram realizados.

  É  neste contexto que surgem organizações radicais e sectárias como o Proletkult ( movimento de cultura proletária). Este movimento que ganha força e projeção durante a guerra , envolvia artistas e intelectuais simpatizante do bolchevismo. O movimento que contou em seu início com Maiakóvski e Eisenstein em suas fileiras, logo encontrou limitadas formulações históricas  em seu “ obreirismo “ cultural. De acordo com Leon Trotski ( talvez o único líder revolucionário a se dedicar de forma lúcida e crítica aos problemas literários e artísticos da época), o Proletkult se fundamentava numa teoria equivocada:  A de que a classe operária precisa desenvolver através de uma suposta arte proletária, sua afirmação cultural de nova classe dominante.

  Se durante a História toda classe revolucionária ao assumir o poder econômico e político impõe sua visão cultural, a condição histórica da classe operária não permitia isso. O socialismo que almeja o comunismo não visa ditar a cultura de uma classe dominante sobre a outra, mas ao contrário eliminar a própria sociedade de classes. Ao contrário da burguesia o proletariado não desenvolveu uma sólida identidade cultural, afinal sua condição histórica de expropriação de riquezas não permitiu assimilar históricos legados culturais no desenvolvimento e na criação de uma independência cultural. Deste modo não forjou a nível de classe uma ofensiva a cultura burguesa, para que esta fosse contraposta por uma suposta forma de “cultura proletária “.

   Ao mesmo tempo isto não significa que no capitalismo grupos explorados não tenham desenvolvido uma produção cultural autêntica :Ao contrário, criaram ( e criam) notáveis formas de representação e de resistência artística. Porém, estas manifestações espalhadas nunca objetivaram um projeto cultural de classe, uma expressão de identidade política atrelada a um projeto de tomada do Estado. Neste sentido o socialismo no terreno artístico não deve ser  representado por uma arte proletária, mas por uma arte revolucionária que conteste o modo de vida burguês e liberte a arte dos grilhões de classe: A arte socialista  por assim dizer seria construída dentro de um lento processo histórico(as Vanguardas seriam um importante fermento para esta arte futura). 

  Será de acordo com este raciocínio acima, que Trotski chama atenção para o fato de que uma cultura que expressasse a etapa socialista da humanidade, seria construída historicamente através de um trabalho de educação (que forneça o patrimônio cultural da humanidade as massas) e de um voto de confiança aos artistas que se lançam de forma independente na criação de uma arte capaz de inovar e desenvolver uma nova cultura. É neste segundo aspecto que deve-se considerar a importância histórica de Maiakóvski ao fundar em 1923  a LEF (frente de esquerda das artes).

   A LEF que dispunha de uma série de atividades e de um órgão oficial de comunicação ( a revista LEF) passa a ser o centro nevrálgico do construtivismo. Pode-se dizer que o construtivismo aprofunda as idéias dos cubofuturistas. Ou seja os construtivistas defendem uma concepção de arte que inspirada nas potencialidades estéticas e cotidianas da tecnologia resultante da industrialização, promovem  o fim das fronteiras entre arte e vida, estética e política.

1.2- A ERA DO CONSTRUTIVISMO :

A idéia de criar uma arte funcional que revele uma desilitização absoluta da cultura fundamentava-se na tônica máxima de Maiakóvski : “ não há arte revolucionária, sem forma revolucionária “. Naquele início da década de vinte, quando a tesoura do Estado era pequena e discreta, os artistas e intelectuais em torno da LEF desenvolvem um período revolucionário nas artes: Literatura, pintura, teatro, cinema e arquitetura se interpenetravam em esforços coletivos, que não eram menos propícios a brigas e profundas desavenças metodológicas.

   Em todas as artes encontramos a ligação com a energia industrial do tempo, ou seja os processos mecânicos da indústria e as conquistas tecnológicas eram incorporados em teorias e trabalhos artísticos. Os artistas de esquerda queriam que a arte contemplativa fosse aniquilada, priorizando criações práticas e estabelecendo uma visão funcional , construtiva para a arte, assim como a ciência.

   Nas artes plásticas encontramos nos pintores um desejo tempestuoso de destruir os limites do cavalete para criar uma arte pública, que se mistura, se desmancha e se confunde com a própria vida. Sobre a palavra de ordem do abstratismo, os suprematistas, projecionistas e outras correntes que encaixavam-se no não objetivismo, apresentavam o cálculo algébrico enquanto método de criação. Esta resultava em formas geométricas que no mais puro racionalismo , propiciavam a construção de objetos autônomos e funcionais. Tátlin, Ródtchevenko, Lávinski, Popova e Stiépanova, estão entre os grandes artistas que exemplificam a funcionalidade cotidiana das artes plásticas.

   A vanguarda construtivista que almejava a estetização da vida, colocando o proletariado enquanto interventor das formas no espaço, redefinia também a arquitetura: Por entre espaços geométricos poeticamente calculados, o estilo de vida coletivo exigia projetos que visavam novas formas de ambientação e uma alteração dos signos urbanos: As diferenças de classes da sociedade anterior havia contaminado a organização e o significado dos símbolos e dos espaços; diante disto alterar a organização opressora anterior consistia no fim da hierarquização simbólica de residências e edifícios, propiciando no desenho arquitetônico das formas uma maior interação social, um contato não alienado entre homem e espaço.

  É preciso ressaltar que todos estes projetos arquitetônicos, que lamentavelmente em sua maioria não saíram do papel, eram o contraponto de uma condição feudal e precária da organização da vida coletiva. Deve-se contextualizar historicamente que a industrialização era vista em seu sentido progressista, enquanto um otimismo que visava melhorar as condições sociais e perceptivas das massas. Se tomarmos a propaganda por exemplo, esta não era na Rússia um meio para a promoção de uma cultura de rebanho, de conservação da ordem alienante do consumismo; mas sim a utilização revolucionária dos meios de comunicação, divulgando em larga escala uma visão poética do homem e dos instrumentos criados por ele.

    O teatro russo  passou neste período por um processo de reteatralização que rompeu radicalmente com o Realismo de Stanislavski e o Teatro de arte de Moscou. Homens como Meyerhold buscam no cabarét, no circo e no teatro de variedades, a matéria prima popular para desenvolver um teatro que somado as concepções do construtivismo marcam uma ruptura cênica: Através da tecnologia a iluminação, a cenografia e o palco são pensados numa completa alteração hierárquica entre ator e público.

  Estabelecendo pontes arquitetônicas e textuais com a platéia, o corpo do ator é priorizado enquanto instrumento de expressão funcional, atlética e antisentimentalóide: O ator biomecânico era  numa mistura entre acrobata, cantor e palhaço o porta voz de uma Revolução cotidiana.

  Tendo a tecnologia de fundo industrial para desenvolver objetos geométricos, arquiteturas, pinturas, cartazes e poemas matemáticos ( nos quais o verso era aniquilado para se buscar na palavra sua diversidade semântica e visual) , o construtivismo priorizou a fotografia, o foto e o tele jornalismo e o documentário na criação artística.

  Neste contexto o cinema será o meio privilegiado para expor a Revolução política e cultural do construtivismo na URSS. Ao mesmo tempo haviam diferentes concepções do discurso cinematográfico, como fica claro entre Eisenstein e Vertov.



1.3- O CINEMA CONSTRUTIVISTA :

  Serguei Eisesntein e Digza Vertov são em suas diferenças os pais e os maiores representantes do cinema revolucionário construtivista. Ambos encontram no primado da montagem a base para fazer do cinematógrafo um meio que potencializa as possibilidades de intervenção política. Sendo o objeto fílmico resultante de uma evolução da técnica que encontra na massa o seu fim expositivo, sua significação social discorre de uma nova etapa histórica  na produção artística e nas reflexões estéticas.

   Estando visualmente contido na fotografia, o cinema ultrapassa as restrições técnicas e espaciais presentes até então na História das artes, para estar tecnicamente conectado com os movimentos de massa do mundo contemporâneo. Seguindo o raciocínio do filósofo Walter Benjamin, a reprodutibilidade técnica da arte, na qual o cinema é a mais poderosa síntese, empurra a experiência estética não mais para uma relação de contemplação religiosa e isolada , mas para uma nova significação cultural da arte: Sua aproximação com a coletividade e consequentemente sua relação direta com a política.

   Se anteriormente ao advento das técnicas de reprodução em massa, a arte e a literatura  tinham sua estruturação e acesso destinados as elites, com a reprodutibilidade técnica ela aproxima-se naturalmente das questões políticas e culturais das massas. Antes que o filósofo alemão citado desenvolvesse sua brilhante tese, os artistas soviéticos já compreendiam o poder de transformação social que acompanha esta nova configuração histórica da arte, sobretudo do cinema. 

      Eisenstein era um jovem engenheiro quando diante da Revolução alista-se no Exército vermelho. Foi um período em que lecionando e trabalhando no Proletkult ,desenvolve um aguçado senso perceptivo para a montagem enquanto potencial de intervenção política. Isto se deu durante seu período de aprendizagem com Meyerhold, quando Eisenstein  trabalhando como ator e cenógrafo de teatro, descobre no veículo cinematográfico o passaporte para embarcar na imagem em movimento.

  Como fica claro em seu texto MONTEGEM DAS ATRAÇÕES de 1923 e publicado no  mesmo ano na revista da LEF, Eisenstein defende que o principio de descontinuidade no teatro e no cinema são sua natureza revolucionária. Opondo-se radicalmente ao projeto literário do Realismo do século XIX, Eisenstein acreditava que a arte revolucionária não cabia nos limites melodramáticos e mistificadores da narrativa linear, ainda que esta apresentasse um conteúdo progressista.

   Para Eisenstein o construtivismo oferecia o método artístico para que através do choque arrancasse o espectador de sua passividade. Estudando os procedimentos da recepção da imagem e seus efeitos na dinâmica psicológica do espectador, o cineasta russo afirmava que o cinema deveria se opor a natureza da narrativa literária para assumir pelas possibilidades técnicas inerentes ao cinema, a sua força política : Este cinema porta voz da Revolução proletária, deveria ser baseado na justaposição de imagens que intercalavam pequenas sketchs, agitprops( manifestações de agitação e propaganda política), atmosferas circenses, que num clima de paródia resultariam numa criativa combinação entre elementos díspares ( mas que pelo primado da montagem eram convertidos num sofisticado espetáculo popular).

   Ao contrário do diletante discurso atual que imprime a duvidosa tese de que ou o cinema torna-se simples e melodramático para o grande público, enquanto um cinema sofisticado somente pode ser possível em restritos guetos culturais, Eisenstein  já superara está falsa dicotomia realizando um cinema altamente experimental que era , ao mesmo tempo, destinado a operários e camponeses(  que em sua esmagadora maioria eram analfabetos).

      Um exemplo prático deste método condicionado pela montagem se deu em 1924 com A GREVE. Mas o ponto mais alto de tal cinema se deu no ano seguinte com a obra prima O ENCOURAÇADO POTEMKIN.

       O filme é um exemplo antológico da tensão preconizada através da descontinuidade que ao possibilitar o choque da imagem, estabelece por sua vez um choque ainda maior nas formas de consciência do espectador. Tendo como tema a Revolução de 1905, a História política russa é revista não dentro da narrativa linear , mas na poética de imagens que não estabelecem verdades acabadas, mas levam o espectador a pensar junto com a imagem. Evidentemente que Potemkin assim como grande parte da produção cinematográfica da época ,  envolveu uma estrutura fílmica de caráter extremamente propagandistico. Porém, tal caráter não envolve a manipulação psicológica e por conseguinte ideológica como no cinema e na publicidade capitalistas. Ao contrário, a didática sofisticada constrói na justaposição dos planos um movimento dialético. É perfeitamente possível a possibilidade do espectador discordar do discurso ideológico de Eisenstein, mas o fio imagético  desenvolvido por este obedece a uma argumentação clara, sem ocultamentos: Inspirado na dialética marxista as imagens seguem uma estrutura de tese, antítese e síntese. Somam-se ainda referências a diferentes concepções estéticas que vão do futurismo á arte japonesa. 

   Em O ENCOURAÇADO POTEMKIN, a revolta de marinheiros de 1905 é vista de forma descontínua. Ao contrário do cinema comercial americano o herói não é individual, mas coletivo: Os marinheiros, o povo, a maioria explorada em confronto com as autoridades que justificam através da força o processo de exploração, maus tratos  e miséria social. O navio parece ter vida própria : Quando a máquina é compreendida em suas formas monumentais, o filme passa a desenvolver uma estética dos objetos em que pistões, manômetros e os elementos mecânicos em seu conjunto , adquirem uma feição autônoma, de caráter construtivista. 

   O filme todo pode ser compreendido como um balé num palco dinamitado... As imagens explosivas que encarnam a violenta dinâmica da luta de classes se encarregam de comentar um mesmo fato sobre diferentes pontos de vista. Talvez o maior exemplo disto seja a seqüência na escadaria de Odessa: Soldados descem a escadaria para reprimir o povo. A chacina  leva o povo a fugir em diferentes direções. Os cortes são multiplicados estendendo o fato  que passa a ser visualmente comentado de forma ampla. A descida torna-se um pesadelo infinito de dor e sofrimento.

    Digza Vertov contribuiu para o desenvolvimento da montagem cinematográfica num sentido diferente ao de Eisenstein. Abraçando com radicalidade o ideário da LEF, em que  fazia-se necessário execrar o lirismo, Vertov  comanda o movimento cine-olho, de natureza documental. O cinema documentarista seria na Visão de Vertov a superação da ficção enquanto categoria de uma cultura decadente. Para o cineasta,  contar uma estória já pré concebia é  a utilização de um recurso literário inerente a cultura burguesa. Vertov via então no cinema documentário o meio de superar a ficção enquanto recurso ultrapassado, expressão de um passado de manipulação psicológica.

      O cineasta russo iniciou suas atividades durante a Revolução, quando estavam praticamente escassos qualquer incentivo ao cinema. Apropriando-se de materiais já filmados, Vertov altera e redefine o significado das imagens através da montagem. Esta torna-se o método para montar seqüências que misturam-se ao ritmo das imagens cotidianas, da existência sem script, em que a vida é em si mesma uma montagem.  

  Vertov define sua teoria através de uma proposta de captação do real, em que a câmera filma o que existe independentemente. Em seu “ deciframento comunista “ do mundo, Vertov idealiza a câmera oculta, capaz de filmar a realidade sem alteração. Porém, embora ousado e ainda hoje extremamente inovador, o método de Vertov peca por um aspecto primário: Na construção ou na reordenação de imagens, é impossível a neutralidade ideológica do olhar. A câmera é um meio técnico de captação de imagens, mas a escolha da natureza destas, dos ângulos filmados e por fim do ritmo orgânico da montagem, não são estabelecidos sem um juízo ideológico a priori, esteja este a nível consciente ou inconsciente. Isto é  antes do cinema, a essência da visão: O olhar em sua dimensão subjetiva passa inevitavelmente por uma compreensão sensível do mundo, determinado historicamente e que  não está isento de interpretações, de ideologias. Por maiores que sejam os esforços de Vertov, em seus filmes está explicito sua visão política : O de registrar sob o ponto de vista revolucionário a vida do povo russo e a construção do socialismo.

 O grande expoente que ilustra o projeto visual do pensamento cinematográfico de Vertov, esta presente no clássico UM HOMEM COM UMA CÂMERA, de 1928 . Nele faz-se presente quase que um jornalismo modernista: Registra-se o cotidiano que sob o ritmo de reconstrução flagra as venezianas da janela intercaladas com os belos cílios de uma jovem cujo o olhar capta a sintonia com a industrialização que caminha vertiginosamente por entre chaminés, esteiras sem mais valia, jornais espalhados pelas ruas que se movem com a velocidade de automóveis que se deixam ultrapassar por trens, em meio a força do atleta que junto a bailarina metaforizam o esforço de simplesmente carregar a Revolução no corpo...

  A simplicidade do cotidiano é supervalorizada e retomada na sua dimensão ritualística: Ao contrário do condicionamento da sociedade burguesa em que o trabalho rouba o tempo de vida( e pequenos hábitos circundam na escravização do cotidiano); em Vertov estes pequenos hábitos são revelados em sua beleza: Escovar os dentes, lavar o rosto, trabalhar numa relação harmônica e não alienada com as máquinas . A Revolução também estaria na cultura, num novo sentido marcado pelo nascimento de uma criança, com  leite jorrando para o lado de fora do mundo, as plantas crescendo, tudo ligado a uma dimensão plástica e revolucionária da vida.

  Trata-se de um redescobrimento da vida, que no sentido coletivo do socialismo poderia liberar a criatividade, humanizando as massas. O lúdico e o rotineiro são pensados enquanto instrumentos de poesia.

   Eisenstein e Vertov alfinetavam-se constantemente. Fervorosas divergências derretiam o gelo na Rússia...Nas polêmicas travadas estavam em jogo dois pontos de vista sobre princípios filosóficos da sétima arte. Tal embate entre um cinema revolucionário de fundo cênico e ficcional e um cinema que aboli estas categorias, deve ser compreendido na conjuntura cultural revolucionária da época: Eram os anos das vanguardas artísticas, e as posições estéticas não admitiam doces reconciliações mas sim produtivos debates sobre o significado social e político da arte. 

   Mas para além de questões estéticas e pessoais, o conflito teórico entre Eisenstein e Vertov, expressa o desejo de construção de uma nova sociedade, enchendo nossos olhos órfãos por polêmicas artísticas. Como fora dito na introdução deste trabalho, a engenharia contra revolucionária do estalinismo construiu o medo e a paranóia na cena cultural russa. Por fim, é preciso através do olhar histórico compreender a herança de um projeto revolucionário abortado, em que  estava indissociado  arte e política.

Orestes Toledo / Afonso Machado




terça-feira, 3 de julho de 2012

Arte Soviética


DISCURSO DE CAETANO VELOSO DURANTE O FESTIVAL DA CANÇÃO EM 1968



Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês
tem coragem de aplaudir, este ano, uma música, um tipo de música que
vocês não teriam coragem de aplaudir no ano passado! São a mesma
juventude que vão sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que
morreu ontem! Vocês não estão entendendo nada, nada, nada,
absolutamente nada. Hoje não tem Fernando Pessoa. Eu hoje vim dizer
aqui, que quem teve coragem de assumir a estrutura de Festival, não
com o medo que o Sr Chico de Assis pediu, mas com a coragem, quem teve
essa coragem de assumir essa estrutura e faze-la explodir foi Gilberto
Gil e fui eu!. Não foi ninguém, foi Gilberto Gil e fui eu!.
Vocês estão por fora! Vocês não dão pra etender. Mas que juventude é
essa? Que juventude é essa? Vocês jamais conterão ninguém. Vocês são
iguais sabem a quem? São iguais sabem a quem? Tem som no microfone?
Vocês são iguais sabem a quem? Aqueles que foram na RODA VIVA e
espancaram os atores! Vocês não diferem em nada deles. Vocês não
diferem em nada. E por falar nisso. Viva Cacilda Becker! Viva Cacilda
Becker! Eu tinha me comprometido a dar esse viva aqui, não tem nada a
ver com vocês. O problema é o seguinte: Vocês estão querendo policiar
a música brasileira. O Maranhão apresentou, este ano, uma música com
arranjo de Charleston. Sabem o que foi? Foi a GABRIELA do ano passado,
que ele não teve coragem de, no ano passado, apresentar por ser
americana. Mas eu e Gil já abrimos o caminho. O que é que vocês
querem? Eu vim aqui para acabar com isso!
Eu quero dizer ao juri: Me desclassifique. Eu não tenho nada a ver
com isso. Nada a ver com isso, Gilberto Gil. Gilberto Gil está comigo
, para nós acabarmos com o Festival e com toda a imbecilidade que
reina no Brasil. Acabar com tudo isso de uma vez. Nós só entramos no
Festival para isso. Não é Gil? Não fingimos aqui que desconhecemos o
que seja Festival, não. Ninguém nunca me ouviu falar assim. Entendeu?
Eu só queria dizer, Baby. Sabe como é? Nós, eu e ele, tivemos coragem
de entrar em todas as estruturas e sair de todas. E vocês? Se vocês
forem... Se vocês, em política, forem como são em Estética, estamos
feitos! Me desclassifique junto com o Gil! Junto com ele, tá
entendendo? E quanto a vocês... O juri é muito simpático, mas é
incompetente. Deus está solto! ...
...Fora do tom, sem melodia. Como é juri? Não acertaram?
Qualificaram a melodia de Gilberto Gil? Ficaram por fora. Gil fundiu a
cuca de vocês? É assim que eu quero ver. Chega!


Caetano Veloso, 1968.

Manifesto Antitropicalista


SÍMBOLO DA MAIS BURRA ALIENAÇÃO

 Augusto Boal

  Folha da Tarde, 29 de maio de 1968

 O primeiro manifesto antitropicalista acaba de ser redigido por Augusto Boal, que vai lançá-lo na I Feira Paulista de Opinião, que estréia dia 5 de junho no Teatro Ruth Escobar, abordando o tema O QUE PENSA VOCÊ DO BRASIL DE HOJE? Boal diz o que pensa do Brasil e da arte que aqui se faz no texto Que pensa você da arte de esquerda?, que ele escreveu como fundamentação da feira. Um dos capítulos desse texto é o manifesto antitropicalista, intitulado Chacrinha e Dercy de Sapato Branco. Em cinco itens o diretor do Teatro de Arena define a sua opinião sobre o movimento de Caetano Veloso e outros que têm como inspiração e símbolo a banana:

 1. O Tropicalismo é neo-romântico - todo ressurgimento do romantismo baseia-se no ataque às aparências da sociedade, agride a usura desumana (o que faz supor a usura humanizada), agride os burgueses pederastas (excluindo os garanhões) e as burguesas lésbicas (excluindo as bem-aventuradas). Agride o predicado e não o sujeito.

 2. O Tropicalismo é homeopático - pretende destruir a cafonice endossando a cafonice, pretende criticar Chacrinha participando de seus programas de auditório.

A participação de um tropicalista num programa do Chacrinha obedece a todas as coordenadas do programa e não às do tropicalista - isto é, o cantor acata docilmente as regras do jogo do programa sem, em nenhum momento, modificá-las: veste-se à maneira do programa, canta as músicas mais indicadas para este tipo de auditório dopado e, finalmente, se essa platéia já está habituada a ganhar repolhos, o cantor, mais sutilmente, atira-lhe bananas.

3. O Tropicalismo é inarticulado - justamente porque ataca as aparências e não a essência da sociedade, e, justamente porque essas aparências são efêmeras e transitórias, o Tropicalismo não se consegue coordenar em nenhum sistema - apenas xinga a cor do camaleão. Seus defensores conseguem apenas alegar vagos desejos de "espinafrar" ou mais moderadamente declaram que "não há nada a declarar".

4. O Tropicalismo é tímido e gentil - pretende épater, mas consegue apenas enchanter les bourgeois. Quando um outro cantor se veste de roupão colorido, isso me parece falta de audácia. Eu vou começar a acreditar um pouco mais nesse movimento quando um tropicalista tiver a coragem de fazer o que Baudelaire já fazia no século passado: andava com cabelos pintados de verde com uma tartaruga colorida atada por uma fitinha cor-de-rosa. No dia em que um deles fizer coisa parecida é capaz até de dar uma boa dor de cabeça a algum policial... (Será sem dúvida uma contribuição para a revolução brasileira...)

5. O Tropicalismo é importado - desde o desenvolvimentismo de JK, quando apareceu o cinema novo, a bossa nova e a nova dramaturgia brasileira, o Brasil não importava arte. Agora, em cinema, é comum assistir a filmes dirigidos por Vincent Minelli (ou quase) para a MGM, coisas do gênero Garota de Ipanema; em teatro, assiste-se à avalancha inglesa misturada com a crueldade provinciana, copiada de Grotowsky Living Theatre, em música, depois do iê-iê-iê vemos a maioria dos nossos cantores procurando fantasias e até Roberto Carlos, que já era símbolo acabado da mais burra alienação, voltou da Europa com os óculos e os bigodes de John Lennon.

Estas são as características do Tropicalismo - afirma Augusto Boal - e, de todas, a pior é a ausência de lucidez. E esta ausência permite que qualquer um fale em nome de todos. Ora, Che Guevara significa a um só tempo um exemplo de luta e um método de conduzir essa luta. Se alguém afirma que o corpo de Che é tão tropical como uma barata voando, estará apenas revelando o seu próprio caráter cafajeste e reacionário. Mas, como dentro do Tropicalismo ninguém define sua própria posição, qualquer imbecil de vista curta, ao balbuciar cretinices como essa, pretende falar em nome de todo o conjunto de havaianos - e estará efetivamente falando até o momento em que algum tropicalista trace os limites do estilo que adotou.

A I Feira Paulista de Opinão sobre o Brasil pretende denunciar também as tendências da arte de esquerda, que facilitam a dominação da direita: o neo-realismo que analisa a vida dos camponeses, operários e lumpens, como as peças de Plínio Marcos, e que funciona como empatia filantrópica. O espectador, por assistir à miséria alheia, julga-se absolvido do crime de ser ele também responsável por essa miséria; a tendência exortativa, tipo Arena Conta Zumbi, que adota a técnica maniqueísta de conflito entre "o lobo e o cordeiro"; o Tropicalismo "que pretende ser tudo e não é nada". O Teatro de Arena quer encontrar a superação dessas tendências, uma saída para a esquerda.

Na feira o público terá contato com essas e mais outras tendências. Verá peças de Augusto Boal (A Lua Pequena e a Caminhada Perigosa), Bráulio Pedroso (É Tua a História Contada?), Lauro César Muniz (O Líder) e Plínio Marcos (Verde que Te Quero Verde). Obras de poetas e artistas plásticos de São Paulo, como Flávio Império, Aldemir Martins, Mario Chamie, Maria Bonomi, Manabu Mabe e outros. Composições de Ari Toledo, Caetano Veloso, Chico Buarque, Edu, Gil, Sérgio Ricardo e Pablo Neruda. E qualquer pessoa pode participar da feira enviando uma obra de arte - quadro, escultura, caricatura, fotografia, cartaz, poema, frase, ensaio, peça, canção - dizendo O QUE PENSA VOCÊ DO BRASIL DE HOJE?