A violência enquanto diversão para
as massas é marca registrada em vários períodos históricos. Não restam dúvidas
de que a nossa cultura brutalizada vem rendendo um culto superficial e distorcido
ás artes marciais: Nas últimas décadas notamos a crescente desvinculação das
modalidades marciais de suas reais implicações filosóficas, e sendo assim
agrava-se a situação simplificadora de tais artes entendidas apenas enquanto
técnicas de combate. Ao lançarmos um olhar atento sobre a História das artes
marciais observamos que esta rica ramificação da cultura obedece a necessidades
espirituais e políticas geradoras de experiências físicas e estéticas que auxiliam
na formação do caráter e na dignidade dos indivíduos em diferentes contextos
temporais e espaciais. De fato é isso que a cultura contemporânea reprime. A
mídia por exemplo não hesita em subestimar os recursos marciais enquanto
diversão massificada: Nos meios de comunicação de massa a violência televisionada
enquanto espetáculo acerca-se de uma
estética sádica e banal para promover a alienação, ocultando e até mesmo
desprezando o sentido de tais habilidades. O cinema enquanto instrumento de
conhecimento humano é sem dúvida um meio que potencialmente pode promover
informações que condizem com o espírito histórico das artes marciais. Evidentemente que muitos filmes promovem tal
espírito, mas são minoritários diante de uma esmagadora maioria de longas
metragens cujo o objetivo é entreter pela violência através de enredos
medíocres. Em meio a socos
folhetinescos e a ponta pés que muitas vezes metaforizam o poderio econômico de Corporações, a linguagem cinematográfica deturpa na maioria
das vezes o sentido histórico das artes marciais. Iremos refletir sobre este
mesmo sentido mais adiante neste artigo.
As Artes marciais estão
disseminadas pelos poros de nossa cultura, contribuindo para moldar uma
percepção estética universal traduzida em belos e eficientes movimentos de
luta. Bruce Lee por exemplo possui uma contribuição mais do que original para
as Artes marciais e diferentemente do que muitos pensam não se restringe apenas
a filmes de Kung Fu(que com Lee atravessaram de fato uma grande Revolução na
concepção das cenas de combate). Ao romper com rígidos padrões marciais
clássicos Bruce Lee desenvolve a filosofia de combate denominada Jeet Kune Do,
que procura questionar as formas fixas de luta bem como os limites entre os
estilos. Trata-se do correlato marcial da inventividade e da experimentação que
marcou toda a cultura das décadas de sessenta e setenta(Lee morreu precocemente
em 1973).
Entretanto, em meio a esta disseminação marcial presente em nossa
cultura, como não levar em conta as necessidades políticas originais que estão
na raiz da maioria das Artes marciais? Refletir sobre a História das artes marciais
é pensar dentro do contexto sócio-político de comunidades que as desenvolveram.
Podemos conceituar artes marciais como sendo métodos de defesa pessoal e
técnicas militares criadas por comunidades. São sistemas de defesa que estão
inseridos na História dos povos, seja como preservação de um determinado
território ou como manifestação de resistência cultural e política. Na era
contemporânea existe uma vinculação praticamente automática das artes marciais
com a esfera do esporte. Inquestionavelmente as artes marciais possuem uma
dimensão esportiva, sendo técnicas comprovadas na promoção de atividades que
visam a recriação, a competição, a saúde
e o desenvolvimento das potencialidades físicas dos indivíduos.
Entretanto as artes marciais não se originaram com este propósito, ao passo que
suas técnicas são indissociáveis de situações reais de combate, aonde o
individuo não teria por objetivo derrotar esportivamente o seu adversário mas
sim buscar com golpes eficientes retira-lo de combate afim de proteger a sua
integridade física. Torneios com regras definidoras de um espírito esportivo e
as faixas enquanto meio para determinar o nível de aprendizagem, são elementos
necessários na organização esportiva, mas não definem por completo a
necessidade das artes marciais na História.
Para se ter uma idéia das necessidades
históricas geradoras das Artes marciais vamos recorrer a um pressuposto
filosófico ancorado na necessidade do equilíbrio e da busca pela harmonia entre
os homens e a natureza. Guerras, imposições governamentais e a exploração do
trabalho social são elementos históricos que pontuam não apenas a História do
Ocidente mas também do Oriente, isto é ,o berço das principais modalidades
marciais. Reagir contra a dominação é reivindicar a busca da harmonia,
significa expor a necessidade do equilíbrio perante as forças opostas que regem
o universo(Yin e Yang para os chineses). Ora é justamente isso que a História da
sociedade classes vem privando o homem e sendo assim a origem de várias
modalidades sugere que estas se apresentam enquanto oposição, rebelião que visa
a completa harmonização dos elementos, ameaçada por todo tipo de agressão.
Exemplos históricos que participam da gênese de muitos estilos de luta
confirmam o dado da Resistência política enquanto motivação para o
aprimoramento das Artes marciais. Lembremo-nos dos monges boxeadores
provenientes do Templo Shaolin na China, orientando marcialmente lideres
políticos, peritos militares e camponeses na luta contra a corrupção de algumas
das Dinastias chinesas durante a época feudal. É notório dentro das
representações artísticas e religiosas chinesas a vinculação de divindades
budistas armadas com o espírito de luta política em vários períodos na China
durante a sua Idade Média(as diferentes representações de Vajrapãni por
exemplo). O pólo de irradiação marcial de Shaolin que teve em seus anais a
contribuição ímpar do monge indiano Bodhidharma, legou técnicas de combates que
estão presentes no imaginário chinês na luta contra as injustiças sociais. Aliás
chega a ser interessante o fato de muitos lideres militares da China feudal
desconfiarem de uma possível vinculação subversiva entre os diferentes estilos
de “ Punho “ com segmentos populares da sociedade chinesa. Avançando um pouco
mais pela História chinesa verificamos que no auge do Imperialismo do século
XIX, momento este em que a China estava sendo fatiada entre as potências
capitalistas, surgem inúmeras sociedades secretas(ou Tríades) lideradas pelos
Tongs: Intelectuais revolucionários que eram especialistas em Artes marciais.
Talvez o maior exemplo de Resistência anti-imperialista vinculado as Artes
marciais chinesas esteja na Revolta dos Boxers(1898-1901), na qual a Sociedade
dos Punhos da Justiça e da Concórdia, desafiou as imposições políticas e
religiosas do Imperialismo europeu.
Além das Artes marciais chinesas, algumas artes marciais
japonesas(historicamente ligadas por uma espécie de cordão umbilical marcial
com a China) também traduzem a tensão política. Na região que corresponde a
Okinawa, o governo que temia a rebelião popular , criou a partir da segunda metade
do século XV um decreto que proibia a população de portar armas. Isto gerou
entre os habitantes da região a necessidade da criação de formas de combate com
as mãos vazias, para resistir as imposições políticas e também a invasões de
outros povos. O fato de Okinawa ser um importante centro comercial permitiu um
intercambio entre diversas culturas asiáticas, sobretudo com Artes marciais
chinesas: Do contato com técnicas de luta trazidas por Comissários chineses na
região, os habitantes de Okinawa desenvolvem diferentes estilos de TE(em
japonês “ mão “). O Karate (mãos vazias)
surge enquanto um eficiente sistema de combate desenvolvido secretamente de
madrugada entre indivíduos selecionados. Além do Karate assistimos também em
Okinawa o surgimento do Kobu Do, quando os habitantes adaptam instrumentos
agrícolas para serem utilizados como armas.
A riqueza política contida na História
das artes marciais exige trabalhos específicos que esbarram em questões
tortuosas do ponto de vista histórico já que verifica-se a dificuldade quanto a
precisão das fontes, afinal as artes marciais estão imersas na História oral,
sujeita a ligeiras modificações. De qualquer modo não podemos nos esquecer que
é nas diferentes formas assumidas na luta entre opressores e oprimidos na História,
que se constroem as artes marciais. Além dos exemplos chinês e japonês
encontramos também entre escravos africanos o desenvolvimento da luta corporal
enquanto recurso de defesa contra agressões. A Capoeira atravessa a História do
Brasil enquanto um forte componente de Resistência: O corpo submisso do escravo
recobra a sua dignidade com os movimentos rápidos provenientes de um sistema de
luta que estrategicamente confunde-se com dança. Dos Capitães do Mato dos tempos da Colônia e do Império passando pela prática repressiva da Polícia racista do
início da República , a Capoeira funcionou enquanto uma manifestação marcial
que recusa a ordem social opressora. Durante séculos a Capoeira esteve imersa
em lendas e num reduto marginal da cultura(isto seria modificado graças ao
trabalho e dedicação de mestres que revelaram a importância cultural da Capoeira,
tais como Bimba, Pastinha e Sombra).
Quem poderia negar a dimensão política e
transgressora das artes marciais? Do escravo submisso ao capoeirista rebelde,
do trabalhador chinês no Riquixá explorado nas ruas de Shangai ao Tong
revolucionário, do camponês oprimido em Okinawa que transforma suas ferramentas
agrícolas e suas mãos em armas, dos grupos sociais oprimidos no Japão feudal aos
Ninjas encapuzados que questionam a cultura dominante dos Samurais , etc.
Muitos outros exemplos históricos(envolvendo outras regiões como a Tailândia e
a Coréia) poderiam ser usados para ilustrar uma idéia que ameaça se perder na
atual sociedade do espetáculo: As artes marciais são indissociáveis de uma
busca pelo equilíbrio ameaçado pela agressão externa, portanto pelas formas de
dominação. Estética e eficiência marcial possuem um uso reacionário nas mãos do
Panis et Circense pós moderno. Cabem aos artistas marciais com sede de justiça social resgatar o sentido
combativo e libertador das artes marciais, isto é, a sua verdadeira
significação histórica.
Afonso
Machado
Ótimo texto, parabéns!
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