Na época de confusão em que vivemos, época toda carregada de
blasfêmias e das fosforescências de uma renegação infinita, onde todos
os valores tanto artísticos quanto morais parecem dissolver-se em um
abismo do qual nada em nenhuma das épocas do espírito pode dar uma
idéia, tive a franqueza de pensar que eu poderia fazer um teatro, que
eu pelo menos poderia encetar esta tentativa de dar de novo vida ao
valor universal do teatro, mas a estupidez de uns, a má fé e a ignóbil
canalhice de outros me dissuadiram para todo o sempre.
Dessa tentativa permanece ante meus olhos o seguinte Manifesto:
Aos... de janeiro de 1927 o teatro A... dará sua primeira
representação. Seus fundadores tem a consciência mais viva da espécie
de desespero que o lançamento de semelhante teatro supõe. E não é sem
um tipo de remorso que eles resolvem faze-lo. Não é preciso que alguém
se engane a esse respeito. O teatro A... não é um negócio, ninguém
duvida. Mas ele é, ademais, uma tentativa pela qual certo número de
espiritos jovens arriscam tudo. Nós não cremos, nós não cremos mais
que haja alguma coisa no mundo que se possa chamar de teatro, nós não
vemos a qual realidade semelhante denominação se dirige. Nós estamos,
ninguém sonharia nega-lo, do ponto de vista espiritual, numa época
crítica. Nós cremos em todas as ameaças do invisível. E é contra o
invisível mesmo que nós lutamos. Nós estamos inteiramente dedicados a
desenterrar um certo número de segredos. E nós queremos justamente
trazer á luz este montão de desejos, de sonhos, de ilusões, de crenças
que levaram a esta mentira na qual ninguém mais acredita, e que chamam
por zombaria, parece: O teatro. Nós queremos chegar a vivificar um
certo número de imagens, mas de imagens evidentes, palpáveis, que não
estejam manchadas de uma eterna desiluzão. Se nós fazemos um teatro
não é para representar peças, mas para conseguir que tudo quanto há de
obscuro no espírito, de infurnado, de irrevelado, se manifeste em uma
espécie de projeção material, real. Nós não procuramos denunciar como
isto se produziu até aqui, como isto sempre foi o fato do teatro, a
ilusão daquilo que não existe, mas ao contrário fazer aparecer ante os
olhares um certo número de quadros, e imagens indestrutiveis,
inegáveis, que falarão ao espírito diretamente. Os objetos, os
acessórios, os próprios cenários que figurarão no palco, deverão ser
entendidos não pelo que representam , mas pelo que são na realidade. A
encenação propriamente dita, as evoluções dos atores, não deverão ser
consideradas senão como signos visiveis de uma linguagem invisível ou
secreta. Não haverá um só gesto de teatro que não carregará atrás de
si toda a fatalidade da vida e os misteriosos encontros dos sonhos.
Tudo o que na vida tem um sentido augural, divinatório, corresponde a
um pressentimento, provém de um erro fecundo do espírito, tudo isto
será encontrado em um dado momento sobre o nosso palco.
Compreende-se que nossa tentativa é tanto mais perigosa quanto
mais ela enxameia de ambições. Mas é preciso efetivamente que as
pessoas se compenetrem desta idéia, de que nós não temos medo do nada.
Não há vazio na natureza que não julguemos o espírito humano capaz de
preencher em um dado momento. Vê-se que terrível tarefa nós nos
atiramos; nós visamos nada menos que remontar ás fontes humanas ou
inumanas do teatro e ressuscita-lo totalmente.
Tudo que pertence á ilegibilidade, á fascinação magnética dos
sonhos, tudo isto, estas camadas sombrias da consciência que são tudo
o que nos preocupa no espírito, nós queremos vê-lo radiar e triunfar
em um palco, prontos a perder a nós mesmos e a nos expor ao rídiculo
de um colossal fracasso. Nós não temos medo tampouco desta espécie de
parti pris que nossa tentativa representa.
Nós concebemos o teatro como uma verdadeira operação de magia. Nós
não nos dirigimos aos olhos, nem á emoção direta da alma; o que nós
procuramos criar é uma certa emoção psicológica onde as molas mais
secretas do coração serão postas a nu.
Nós não pensamos que a vida seja representável em si mesma ou que
valha a pena arriscar a sorte neste sentido.
Rumo a este teatro ideal, nós avançamos nós mesmos como cegos.
Nós sabemos parcialmente o que queremos fazer e como poderíamos
realiza-lo materialmente, mas temos fé em um acaso, em um milagre que
se produzirá para nos revelar tudo o que ignoramos ainda e que dará
toda a sua vida superior profunda a esta pobre matéria que nós nos
encarniçamos em amassar.
Fora portanto da maior ou menor consecução de nossos espetáculos, os
que vierem a nós compreenderão que participam de uma tentativa mística
pela qual uma parte importante do domínio do espírito e da consciência
pode ser definitivamente salva ou perdida.
Antonin Artaud, 1926.
PS: Estes revolucionários de papel de bosta que gostariam de nos levar
a crer que fazer atualmente teatro é ( como se isto valesse a pena,
como se isto pudesse ter importância, as letras, como se não fosse
alhures que nós desde sempre fixamos nossas vidas), esses velhacos
sujos gostariam de nos levar a crer que fazer atualmente teatro é uma
tentativa contra-revolucionária, como se a Revolução fosse uma
idéia-tabu e na qual fosse desde sempre proibido tocar.
Pois bem, eu não aceito idéia-tabu.
Para mim há muitas maneiras de entender a Revolução e dentre estas
maneiras a comunista me parece de longe a pior, a mais reduzida. Uma
Revolução de preguiçosos.Não me importa absolutamente, eu o proclamo
bem alto, que o poder passe das mãos da burguesia para as do
proletariado. Para mim a Revolução não está aí. Ela não está em uma
simples transmissão de poderes. Uma Revolução que pôs na primeira
fileira de suas preocupações as necessidades da produção e que devido
a este fato se obstina em apoiar-se no maquinismo como um meio de
facilitar a condição dos operários é para mim uma Revolução de
castrados. E eu não me alimento desta erva aí. Eu acho, ao contrário,
que uma das razões principais do mal de que sofremos reside na
exteriorização desenfreada e na multiplicação prolongada ao infinito
da força; ela também reside em uma facilidade anormal introduzida nas
trocas de homem para homem e que não deixa mais ao pensamento o tempo
de retomar raiz nele mesmo. Estamos todos desesperados de tanto
maquinismo em todos os niveis de nossa meditação. Mas as verdadeiras
raizes do mal são mais profundas, seria preciso um volume para
analisá-las. Por hora limitar-me-ei a dizer que a Revolução mais
urgente a realizar está em uma espécie de regressão no tempo. Que nós
voltemos a mentalidade ou simplesmente aos hábitos da vida da Idade
Média, mas realmente e por uma via de metamorfose nas essências, e
julgarei então que teremos efetuado a única Revolução de que vale a
pena que se fale.
Há bombas a pôr em alguma parte, mas na base da maioria dos hábitos
do pensamento presente , europeu ou não. Por estes hábitos, os
Senhores Surrealistas estão atingidos muito mais do que eu lhes
asseguro, e o respeito deles por certos fetiches feitos homens e o
ajoelhamento diante do Comunismo é a melhor prova.
É certo que se eu tivesse feito um teatro, aquilo que eu teria
feito estaria tão pouco aparentado com o que se tem o hábito de chamar
teatro quanto a representação de uma obscenidade qualquer se assemelha
a um antigo mistério religioso.
Antonin Artaud, 1927.
blasfêmias e das fosforescências de uma renegação infinita, onde todos
os valores tanto artísticos quanto morais parecem dissolver-se em um
abismo do qual nada em nenhuma das épocas do espírito pode dar uma
idéia, tive a franqueza de pensar que eu poderia fazer um teatro, que
eu pelo menos poderia encetar esta tentativa de dar de novo vida ao
valor universal do teatro, mas a estupidez de uns, a má fé e a ignóbil
canalhice de outros me dissuadiram para todo o sempre.
Dessa tentativa permanece ante meus olhos o seguinte Manifesto:
Aos... de janeiro de 1927 o teatro A... dará sua primeira
representação. Seus fundadores tem a consciência mais viva da espécie
de desespero que o lançamento de semelhante teatro supõe. E não é sem
um tipo de remorso que eles resolvem faze-lo. Não é preciso que alguém
se engane a esse respeito. O teatro A... não é um negócio, ninguém
duvida. Mas ele é, ademais, uma tentativa pela qual certo número de
espiritos jovens arriscam tudo. Nós não cremos, nós não cremos mais
que haja alguma coisa no mundo que se possa chamar de teatro, nós não
vemos a qual realidade semelhante denominação se dirige. Nós estamos,
ninguém sonharia nega-lo, do ponto de vista espiritual, numa época
crítica. Nós cremos em todas as ameaças do invisível. E é contra o
invisível mesmo que nós lutamos. Nós estamos inteiramente dedicados a
desenterrar um certo número de segredos. E nós queremos justamente
trazer á luz este montão de desejos, de sonhos, de ilusões, de crenças
que levaram a esta mentira na qual ninguém mais acredita, e que chamam
por zombaria, parece: O teatro. Nós queremos chegar a vivificar um
certo número de imagens, mas de imagens evidentes, palpáveis, que não
estejam manchadas de uma eterna desiluzão. Se nós fazemos um teatro
não é para representar peças, mas para conseguir que tudo quanto há de
obscuro no espírito, de infurnado, de irrevelado, se manifeste em uma
espécie de projeção material, real. Nós não procuramos denunciar como
isto se produziu até aqui, como isto sempre foi o fato do teatro, a
ilusão daquilo que não existe, mas ao contrário fazer aparecer ante os
olhares um certo número de quadros, e imagens indestrutiveis,
inegáveis, que falarão ao espírito diretamente. Os objetos, os
acessórios, os próprios cenários que figurarão no palco, deverão ser
entendidos não pelo que representam , mas pelo que são na realidade. A
encenação propriamente dita, as evoluções dos atores, não deverão ser
consideradas senão como signos visiveis de uma linguagem invisível ou
secreta. Não haverá um só gesto de teatro que não carregará atrás de
si toda a fatalidade da vida e os misteriosos encontros dos sonhos.
Tudo o que na vida tem um sentido augural, divinatório, corresponde a
um pressentimento, provém de um erro fecundo do espírito, tudo isto
será encontrado em um dado momento sobre o nosso palco.
Compreende-se que nossa tentativa é tanto mais perigosa quanto
mais ela enxameia de ambições. Mas é preciso efetivamente que as
pessoas se compenetrem desta idéia, de que nós não temos medo do nada.
Não há vazio na natureza que não julguemos o espírito humano capaz de
preencher em um dado momento. Vê-se que terrível tarefa nós nos
atiramos; nós visamos nada menos que remontar ás fontes humanas ou
inumanas do teatro e ressuscita-lo totalmente.
Tudo que pertence á ilegibilidade, á fascinação magnética dos
sonhos, tudo isto, estas camadas sombrias da consciência que são tudo
o que nos preocupa no espírito, nós queremos vê-lo radiar e triunfar
em um palco, prontos a perder a nós mesmos e a nos expor ao rídiculo
de um colossal fracasso. Nós não temos medo tampouco desta espécie de
parti pris que nossa tentativa representa.
Nós concebemos o teatro como uma verdadeira operação de magia. Nós
não nos dirigimos aos olhos, nem á emoção direta da alma; o que nós
procuramos criar é uma certa emoção psicológica onde as molas mais
secretas do coração serão postas a nu.
Nós não pensamos que a vida seja representável em si mesma ou que
valha a pena arriscar a sorte neste sentido.
Rumo a este teatro ideal, nós avançamos nós mesmos como cegos.
Nós sabemos parcialmente o que queremos fazer e como poderíamos
realiza-lo materialmente, mas temos fé em um acaso, em um milagre que
se produzirá para nos revelar tudo o que ignoramos ainda e que dará
toda a sua vida superior profunda a esta pobre matéria que nós nos
encarniçamos em amassar.
Fora portanto da maior ou menor consecução de nossos espetáculos, os
que vierem a nós compreenderão que participam de uma tentativa mística
pela qual uma parte importante do domínio do espírito e da consciência
pode ser definitivamente salva ou perdida.
Antonin Artaud, 1926.
PS: Estes revolucionários de papel de bosta que gostariam de nos levar
a crer que fazer atualmente teatro é ( como se isto valesse a pena,
como se isto pudesse ter importância, as letras, como se não fosse
alhures que nós desde sempre fixamos nossas vidas), esses velhacos
sujos gostariam de nos levar a crer que fazer atualmente teatro é uma
tentativa contra-revolucionária, como se a Revolução fosse uma
idéia-tabu e na qual fosse desde sempre proibido tocar.
Pois bem, eu não aceito idéia-tabu.
Para mim há muitas maneiras de entender a Revolução e dentre estas
maneiras a comunista me parece de longe a pior, a mais reduzida. Uma
Revolução de preguiçosos.Não me importa absolutamente, eu o proclamo
bem alto, que o poder passe das mãos da burguesia para as do
proletariado. Para mim a Revolução não está aí. Ela não está em uma
simples transmissão de poderes. Uma Revolução que pôs na primeira
fileira de suas preocupações as necessidades da produção e que devido
a este fato se obstina em apoiar-se no maquinismo como um meio de
facilitar a condição dos operários é para mim uma Revolução de
castrados. E eu não me alimento desta erva aí. Eu acho, ao contrário,
que uma das razões principais do mal de que sofremos reside na
exteriorização desenfreada e na multiplicação prolongada ao infinito
da força; ela também reside em uma facilidade anormal introduzida nas
trocas de homem para homem e que não deixa mais ao pensamento o tempo
de retomar raiz nele mesmo. Estamos todos desesperados de tanto
maquinismo em todos os niveis de nossa meditação. Mas as verdadeiras
raizes do mal são mais profundas, seria preciso um volume para
analisá-las. Por hora limitar-me-ei a dizer que a Revolução mais
urgente a realizar está em uma espécie de regressão no tempo. Que nós
voltemos a mentalidade ou simplesmente aos hábitos da vida da Idade
Média, mas realmente e por uma via de metamorfose nas essências, e
julgarei então que teremos efetuado a única Revolução de que vale a
pena que se fale.
Há bombas a pôr em alguma parte, mas na base da maioria dos hábitos
do pensamento presente , europeu ou não. Por estes hábitos, os
Senhores Surrealistas estão atingidos muito mais do que eu lhes
asseguro, e o respeito deles por certos fetiches feitos homens e o
ajoelhamento diante do Comunismo é a melhor prova.
É certo que se eu tivesse feito um teatro, aquilo que eu teria
feito estaria tão pouco aparentado com o que se tem o hábito de chamar
teatro quanto a representação de uma obscenidade qualquer se assemelha
a um antigo mistério religioso.
Antonin Artaud, 1927.