O furacão de outubro trouxe no
centro de seu espectro vermelho uma tempestade revolucionária na política e uma
avalanche experimental na cultura. A Revolução de 1917, momento ímpar da utopia
do século XX, revelou que a histórica virada de mesa dos bolcheviques exigia
uma transformação cultural, a qual seria encabeçada pelas vanguardas
artísticas.
Os principais movimentos de vanguarda que aderiam fervorosamente a
Revolução, empregavam um sonho que nutria-se no útero estético modernista para
nascer numa profunda transformação do modo de vida da sociedade russa. Tal
sonho era uma exigência que vinha desde o início da década de dez, portanto
anterior a Revolução, e era empregada sobretudo pelos cubofuturistas.
No projeto revolucionário da primeira geração de artistas soviéticos, a
plena transformação social seria incompleta se restrita ao âmbito econômico da
coletivização dos meios de produção. Seria preciso revolucionar também os
valores culturais, através de formas de representação que invadissem o
cotidiano do proletariado afim de promover uma arte ligada a vida das massas.
A arte de vanguarda partilhava de uma utopia em que a política e a arte
eram indissociáveis no pensamento e na criação de uma realidade revolucionária,
portadora de um novo estágio da História humana. E será neste sentido que o
construtivismo irá representar a expressão máxima de um projeto estético que
redefinia a função social da arte.
Execrando o Realismo e toda a herança artística que expressava a cultura
burguesa, os construtivistas se lançam num conjunto de linguagens artísticas
para buscar na precisão da forma e na objetividade antisentimentalóide, uma
arte desilitizada , acessível e conectada com o cotidiano das massas. Trata-se
de uma busca concreta por uma estetização da vida, um projeto de sociedade em
que o sentido prático da arte dissemine a Revolução através da percepção.
Porém, se a vanguarda no contexto político e no contexto artístico
empenharam-se na destruição do modo de vida burguês, a partir de 1925 as garras de ferro da
burocracia estalinista passam a esboçar um desencontro histórico. Trata-se do
início de uma política contra revolucionária, a qual se consolidaria
definitivamente na cultura em 1934. Ou seja todo o empenho dos artistas de
vanguarda se esvai pelo ralo da burocracia. Surge uma forma servil de arte: O Realismo
socialista, ou seja uma arte que funciona enquanto superestrutura ideológica
para um Estado despótico. Era o poente da ousadia estética, da inteligência e
da utopia na URSS.
Ergue-se um período sombrio em que abaixo do busto de Stálin ouvia-se o
disparar da bala que Maiakóvski cravara no seu próprio peito. Um momento em que
o Kremilin emudecia-se diante do desaparecimento de Meyerhold nos campos de
concentração, e que as tesouras andavam a espreita nos estúdios para cortarem a
criatividade do cinema de Eisenstein e
de Vertov.
Estando Eisesntein e Vertov entre os grandes gênios da História do
cinema, será enfatizado mais adiante (em suas particularidades teóricas )o
pensamento cinematográfico de ambos durante os anos do construtivismo russo.
Mas antes de adentrarmos pelo
pensamento construtivista e pelo debate cinematográfico soviético, vejamos um
pouco das origens do construtivismo através do futurismo russo.
1.1-
O ALICERCE FUTURISTA:
Pode-se dizer que a raiz do pensamento de vanguarda na Rússia está no
futurismo. É curioso como o futurismo nascido na Itália pelas mãos de Marinetti
adquire diferentes roupagens ideológicas nos diversos países em que se fez
presente. O MANIFESTO DO FUTURISMO redigido
por Marinetti e lançado em 1909 traz na estrutura de uma declaração
política (isto é o manifesto) um chamado de ruptura estética, uma ode a
sociedade da técnica e a diluição entre as fronteiras da ação artística e da
ação política.
Porém a vinculação ideológica do futurismo varia : Na Itália apresenta
uma origem anarquista que lamentavelmente adquire uma posterior ligação com o
fascismo; no Brasil o futurismo torna-se
expressão de um pensamento liberal e de um desejo de modernidade que rompe com esclerosados paradigmas
estéticos. Na Rússia o futurismo liga-se ao socialismo revolucionário de Lenin.
Ao mesmo tempo esta ligação com a visão bolchevista correspondia a uma radicalização
interna do futurismo russo. Vejamos através da poesia dois exemplos
ideológicamente contrastantes dentro do futurismo russo:
A ORQUESTROMELODIA FLUTUAVA RÓSEA
SOBRE O VELUDO BRANCO DO FOYER
A CONDESSA COM GRAÇAS DE LIBÉLULA
MASTIGAVA CHOCOLATE CAILLER
Ígor Sievieripanin, 1911
...SABEM VOCÊS , INÚTEIS DILETANTES
QUE SÓ PENSAM EM ENCHER A PANÇA E O
COFRE
QUE TALVEZ UMA BOMBA NESTE INSTANTE
ARRANCA AS PERNAS AO TENENTE
PIETROV?...
VOCÊS , GOZADORES DE FÊMEAS E DE
PRATOS
DARIAM A VIDA POR SEUS BACANAIS?...
...MIL VEZES NO BAR ÁS PUTAS
FICAR SERVINDO SUCO DE ANANAS...
Vladmir Maiakóvski, 1915.
A partir destes dois poemas, ambos de procedência futurista, podemos
verificar as discrepâncias estéticas e temáticas no interior do movimento.
No poema de Sieveripanin encontramos um inventivo jogo de imagens que
traz uma modernidade desconectada dos problemas desta. Uma condessa comendo
chocolates, em meio a veludo branco, numa atmosfera delicada em que as letras
macias tornam-se uma bolha alienante em meio a uma Rússia marcada pela agitação
política do movimento operário. Trata-se da tendência do grupo dos
ego-futuristas que buscavam abordar a modernidade dentro de uma proposta
formalista e de isolamento.
Já no caso de Maiakóvski, a agressividade inerente ao futurismo
converte-se em um grito de protesto contra a classe dominante. Trata-se da
tendência do grupo dos cubofuturistas, os quais abraçavam com violência um
projeto de transformação da cultura russa. Evidentemente que as diferenças
entre os ego e cubofuturistas se davam
tanto a nível estético quanto político: Enquanto os primeiros ambientavam os
salões elitistas de Petrogrado, transformando o futurismo em futilidade, os
segundos são a simbiose eletrificada de Moscou, encarnando com plenitude a
agitação futurista enquanto instrumento artístico que ligava-se ao clima
revolucionário do bolchevismo e dos soviets.
Façamos a partir de um contraponto visual o desagradável impacto dos cubofuturistas na ala conservadora da inteligentísia russa: De
um lado uma Rússia em grande parte semi feudal, com poucos centros urbanos, nos quais operários eram
explorados e literatos e intelectuais beiçudos de salão, serviam de
superestrutura para uma situação de conformismo e de perpetuação da miséria. Do
outro lado um pequeno grupo de jovens raivosos, em estado vulcânico, portanto
blusas amarelas, com listras extravagantes, gravatas escandalosas, desenhos no
rosto, maquiagem insolente e uma bravura que não poupava nenhum literato.
Maiakóvski, burkiuk, Khlebnikov e outros
jovens insolentes, utilizavam a poesia e o escândalo para reunir um clima de
inovação estética que envolvia o teatro, as artes plásticas e como veremos o
cinema. O manifesto BOFETADA NO GOSTO PÚBLICO de 1912, é um brilhante exemplo
do espírito do grupo. Logo no início do manifesto os cubofuturistas se
autoproclamavam a corneta que vem acordar uma cultura ainda em sono feudal.: “
Somente nós somos o rosto do nosso tempo. A corneta do tempo ressoa na nossa
arte verbal “. Era como se grupo
chamasse o país para um revolvimento cultural e utilizando a bofetada enquanto
célebre metáfora futurista, agredir a cultura oficial das elites.
As atividades dos cubofuturistas envolviam pequenas turnês pelas
províncias da Rússia. Numa fusão entre sarau,
conferência, sketch e insulto, o grupo invadia cafes, cabarets e teatros, afim
de anunciar que sua Revolução estética era parte integrante de uma ampla Revolução
que estava a caminho; e realmente estava... Quando os Bolcheviques lideram a
insurreição de outubro, os cubofuturistas se aliam a Lenin e posteriormente se engajam na
guerra civil contra os Brancos.
Naqueles dias de frio e fome pelos quais a
Rússia passava, um admirável esforço foi empreendido por uma geração de
artistas e intelectuais que produziam aquilo que era chamado de arte de esquerda. Trata-se de
um empenho coletivo em que artistas de vanguarda produziam cartazes de guerra,
poetas inflamavam a causa proletária, peças teatrais eram realizadas nos front
de batalha, e círculos de cursos e
debates inflamados sobre arte revolucionária eram realizados.
É neste contexto que surgem
organizações radicais e sectárias como o Proletkult ( movimento de cultura
proletária). Este movimento que ganha força e projeção durante a guerra ,
envolvia artistas e intelectuais simpatizante do bolchevismo. O movimento que
contou em seu início com Maiakóvski e Eisenstein em suas fileiras, logo
encontrou limitadas formulações históricas
em seu “ obreirismo “ cultural. De acordo com Leon Trotski ( talvez o
único líder revolucionário a se dedicar de forma lúcida e crítica aos problemas
literários e artísticos da época), o Proletkult se fundamentava numa teoria equivocada: A de que a classe operária precisa
desenvolver através de uma suposta arte proletária, sua afirmação cultural de
nova classe dominante.
Se durante a História toda classe revolucionária ao assumir o poder
econômico e político impõe sua visão cultural, a condição histórica da classe
operária não permitia isso. O socialismo que almeja o comunismo não visa ditar
a cultura de uma classe dominante sobre a outra, mas ao contrário eliminar a
própria sociedade de classes. Ao contrário da burguesia o proletariado não
desenvolveu uma sólida identidade cultural, afinal sua condição histórica de
expropriação de riquezas não permitiu assimilar históricos legados culturais no
desenvolvimento e na criação de uma independência cultural. Deste modo não
forjou a nível de classe uma ofensiva a cultura burguesa, para que esta fosse
contraposta por uma suposta forma de “cultura proletária “.
Ao mesmo tempo isto não significa que no capitalismo grupos explorados
não tenham desenvolvido uma produção cultural autêntica :Ao contrário, criaram
( e criam) notáveis formas de representação e de resistência artística. Porém,
estas manifestações espalhadas nunca objetivaram um projeto cultural de classe,
uma expressão de identidade política atrelada a um projeto de tomada do Estado.
Neste sentido o socialismo no terreno artístico não deve ser representado por uma arte proletária, mas por
uma arte revolucionária que conteste o modo de vida burguês e liberte a arte
dos grilhões de classe: A arte socialista
por assim dizer seria construída dentro de um lento processo
histórico(as Vanguardas seriam um importante fermento para esta arte futura).
Será de acordo com este raciocínio acima, que Trotski chama atenção para
o fato de que uma cultura que expressasse a etapa socialista da humanidade,
seria construída historicamente através de um trabalho de educação (que forneça
o patrimônio cultural da humanidade as massas) e de um voto de confiança aos
artistas que se lançam de forma independente na criação de uma arte capaz de inovar
e desenvolver uma nova cultura. É neste segundo aspecto que deve-se considerar
a importância histórica de Maiakóvski ao fundar em 1923 a LEF (frente de esquerda das artes).
A LEF que dispunha de uma série de atividades e de um órgão oficial de
comunicação ( a revista LEF) passa a ser o centro nevrálgico do construtivismo.
Pode-se dizer que o construtivismo aprofunda as idéias dos cubofuturistas. Ou
seja os construtivistas defendem uma concepção de arte que inspirada nas
potencialidades estéticas e cotidianas da tecnologia resultante da
industrialização, promovem o fim das
fronteiras entre arte e vida, estética e política.
1.2- A ERA DO CONSTRUTIVISMO :
A idéia de criar uma arte
funcional que revele uma desilitização absoluta da cultura fundamentava-se na tônica
máxima de Maiakóvski : “ não há arte revolucionária, sem forma revolucionária “.
Naquele início da década de vinte, quando a tesoura do Estado era pequena e
discreta, os artistas e intelectuais em torno da LEF desenvolvem um período
revolucionário nas artes: Literatura, pintura, teatro, cinema e arquitetura se
interpenetravam em esforços coletivos, que não eram menos propícios a brigas e
profundas desavenças metodológicas.
Em todas as artes encontramos a ligação com a energia industrial do tempo,
ou seja os processos mecânicos da indústria e as conquistas tecnológicas eram
incorporados em teorias e trabalhos artísticos. Os artistas de esquerda queriam
que a arte contemplativa fosse aniquilada, priorizando criações práticas e
estabelecendo uma visão funcional , construtiva para a arte, assim como a
ciência.
Nas artes plásticas encontramos nos pintores um desejo tempestuoso de
destruir os limites do cavalete para criar uma arte pública, que se mistura, se
desmancha e se confunde com a própria vida. Sobre a palavra de ordem do
abstratismo, os suprematistas, projecionistas e outras correntes que
encaixavam-se no não objetivismo, apresentavam o cálculo algébrico enquanto
método de criação. Esta resultava em formas geométricas que no mais puro
racionalismo , propiciavam a construção de objetos autônomos e funcionais.
Tátlin, Ródtchevenko, Lávinski, Popova e Stiépanova, estão entre os grandes
artistas que exemplificam a funcionalidade cotidiana das artes plásticas.
A vanguarda construtivista que almejava a estetização da vida, colocando
o proletariado enquanto interventor das formas no espaço, redefinia também a
arquitetura: Por entre espaços geométricos poeticamente calculados, o estilo de
vida coletivo exigia projetos que visavam novas formas de ambientação e uma
alteração dos signos urbanos: As diferenças de classes da sociedade anterior
havia contaminado a organização e o significado dos símbolos e dos espaços;
diante disto alterar a organização opressora anterior consistia no fim da hierarquização
simbólica de residências e edifícios, propiciando no desenho arquitetônico das
formas uma maior interação social, um contato não alienado entre homem e
espaço.
É preciso ressaltar que todos estes projetos arquitetônicos, que
lamentavelmente em sua maioria não saíram do papel, eram o contraponto de uma
condição feudal e precária da organização da vida coletiva. Deve-se
contextualizar historicamente que a industrialização era vista em seu sentido progressista,
enquanto um otimismo que visava melhorar as condições sociais e perceptivas das
massas. Se tomarmos a propaganda por exemplo, esta não era na Rússia um meio
para a promoção de uma cultura de rebanho, de conservação da ordem alienante do
consumismo; mas sim a utilização revolucionária dos meios de comunicação,
divulgando em larga escala uma visão poética do homem e dos instrumentos
criados por ele.
O teatro russo passou neste período por um processo de
reteatralização que rompeu radicalmente com o Realismo de Stanislavski e o Teatro
de arte de Moscou. Homens como Meyerhold buscam no cabarét, no circo e no
teatro de variedades, a matéria prima popular para desenvolver um teatro que
somado as concepções do construtivismo marcam uma ruptura cênica: Através da
tecnologia a iluminação, a cenografia e o palco são pensados numa completa
alteração hierárquica entre ator e público.
Estabelecendo pontes arquitetônicas e textuais com a platéia, o corpo do
ator é priorizado enquanto instrumento de expressão funcional, atlética e
antisentimentalóide: O ator biomecânico era
numa mistura entre acrobata, cantor e palhaço o porta voz de uma Revolução
cotidiana.
Tendo a tecnologia de fundo industrial para desenvolver objetos
geométricos, arquiteturas, pinturas, cartazes e poemas matemáticos ( nos quais
o verso era aniquilado para se buscar na palavra sua diversidade semântica e
visual) , o construtivismo priorizou a fotografia, o foto e o tele jornalismo e
o documentário na criação artística.
Neste contexto o cinema será o meio privilegiado para expor a Revolução
política e cultural do construtivismo na URSS. Ao mesmo tempo haviam diferentes
concepções do discurso cinematográfico, como fica claro entre Eisenstein e
Vertov.
1.3- O CINEMA CONSTRUTIVISTA :
Serguei Eisesntein e Digza Vertov são em suas diferenças os pais e os
maiores representantes do cinema revolucionário construtivista. Ambos encontram
no primado da montagem a base para fazer do cinematógrafo um meio que
potencializa as possibilidades de intervenção política. Sendo o objeto fílmico resultante
de uma evolução da técnica que encontra na massa o seu fim expositivo, sua
significação social discorre de uma nova etapa histórica na produção artística e nas reflexões
estéticas.
Estando visualmente contido na fotografia, o cinema ultrapassa as
restrições técnicas e espaciais presentes até então na História das artes, para
estar tecnicamente conectado com os movimentos de massa do mundo contemporâneo.
Seguindo o raciocínio do filósofo Walter Benjamin, a reprodutibilidade técnica
da arte, na qual o cinema é a mais poderosa síntese, empurra a experiência
estética não mais para uma relação de contemplação religiosa e isolada , mas
para uma nova significação cultural da arte: Sua aproximação com a coletividade
e consequentemente sua relação direta com a política.
Se anteriormente ao advento das técnicas de reprodução em massa, a arte
e a literatura tinham sua estruturação e
acesso destinados as elites, com a reprodutibilidade técnica ela aproxima-se
naturalmente das questões políticas e culturais das massas. Antes que o
filósofo alemão citado desenvolvesse sua brilhante tese, os artistas soviéticos
já compreendiam o poder de transformação social que acompanha esta nova
configuração histórica da arte, sobretudo do cinema.
Eisenstein era um jovem engenheiro quando
diante da Revolução alista-se no Exército vermelho. Foi um período em que
lecionando e trabalhando no Proletkult ,desenvolve um aguçado senso perceptivo
para a montagem enquanto potencial de intervenção política. Isto se deu durante
seu período de aprendizagem com Meyerhold, quando Eisenstein trabalhando como ator e cenógrafo de teatro,
descobre no veículo cinematográfico o passaporte para embarcar na imagem em
movimento.
Como fica claro em seu texto MONTEGEM DAS ATRAÇÕES de 1923 e publicado
no mesmo ano na revista da LEF,
Eisenstein defende que o principio de descontinuidade no teatro e no cinema são
sua natureza revolucionária. Opondo-se radicalmente ao projeto literário do Realismo
do século XIX, Eisenstein acreditava que a arte revolucionária não cabia nos
limites melodramáticos e mistificadores da narrativa linear, ainda que esta
apresentasse um conteúdo progressista.
Para Eisenstein o construtivismo oferecia o método artístico para que
através do choque arrancasse o espectador de sua passividade. Estudando os
procedimentos da recepção da imagem e seus efeitos na dinâmica psicológica do
espectador, o cineasta russo afirmava que o cinema deveria se opor a natureza
da narrativa literária para assumir pelas possibilidades técnicas inerentes ao
cinema, a sua força política : Este cinema porta voz da Revolução proletária,
deveria ser baseado na justaposição de imagens que intercalavam pequenas sketchs,
agitprops( manifestações de agitação e propaganda política), atmosferas circenses,
que num clima de paródia resultariam numa criativa combinação entre elementos
díspares ( mas que pelo primado da montagem eram convertidos num sofisticado
espetáculo popular).
Ao contrário do diletante discurso atual que imprime a duvidosa tese de
que ou o cinema torna-se simples e melodramático para o grande público,
enquanto um cinema sofisticado somente pode ser possível em restritos guetos
culturais, Eisenstein já superara está
falsa dicotomia realizando um cinema altamente experimental que era , ao mesmo
tempo, destinado a operários e camponeses(
que em sua esmagadora maioria eram analfabetos).
Um exemplo prático deste método
condicionado pela montagem se deu em 1924 com A GREVE. Mas o ponto mais alto de
tal cinema se deu no ano seguinte com a obra prima O ENCOURAÇADO POTEMKIN.
O filme é um exemplo antológico da
tensão preconizada através da descontinuidade que ao possibilitar o choque da
imagem, estabelece por sua vez um choque ainda maior nas formas de consciência
do espectador. Tendo como tema a Revolução de 1905, a História política
russa é revista não dentro da narrativa linear , mas na poética de imagens que
não estabelecem verdades acabadas, mas levam o espectador a pensar junto com a
imagem. Evidentemente que Potemkin assim como grande parte da produção
cinematográfica da época , envolveu uma
estrutura fílmica de caráter extremamente propagandistico. Porém, tal caráter
não envolve a manipulação psicológica e por conseguinte ideológica como no
cinema e na publicidade capitalistas. Ao contrário, a didática sofisticada
constrói na justaposição dos planos um movimento dialético. É perfeitamente
possível a possibilidade do espectador discordar do discurso ideológico de
Eisenstein, mas o fio imagético desenvolvido por este obedece a uma
argumentação clara, sem ocultamentos: Inspirado na dialética marxista as
imagens seguem uma estrutura de tese, antítese e síntese. Somam-se ainda
referências a diferentes concepções estéticas que vão do futurismo á arte
japonesa.
O filme todo pode ser compreendido como um balé num palco dinamitado...
As imagens explosivas que encarnam a violenta dinâmica da luta de classes se
encarregam de comentar um mesmo fato sobre diferentes pontos de vista. Talvez o
maior exemplo disto seja a seqüência na escadaria de Odessa: Soldados descem a
escadaria para reprimir o povo. A chacina
leva o povo a fugir em diferentes direções. Os cortes são multiplicados estendendo
o fato que passa a ser visualmente
comentado de forma ampla. A descida torna-se um pesadelo infinito de dor e
sofrimento.
Digza Vertov contribuiu para o
desenvolvimento da montagem cinematográfica num sentido diferente ao de
Eisenstein. Abraçando com radicalidade o ideário da LEF, em que fazia-se necessário execrar o lirismo,
Vertov comanda o movimento cine-olho, de
natureza documental. O cinema documentarista seria na Visão de Vertov a
superação da ficção enquanto categoria de uma cultura decadente. Para o
cineasta, contar uma estória já pré
concebia é a utilização de um recurso
literário inerente a cultura burguesa. Vertov via então no cinema documentário o
meio de superar a ficção enquanto recurso ultrapassado, expressão de um passado
de manipulação psicológica.
O cineasta russo iniciou suas atividades
durante a Revolução, quando estavam praticamente escassos qualquer incentivo ao
cinema. Apropriando-se de materiais já filmados, Vertov altera e redefine o
significado das imagens através da montagem. Esta torna-se o método para montar
seqüências que misturam-se ao ritmo das imagens cotidianas, da existência sem
script, em que a vida é em si mesma uma montagem.
Vertov define sua teoria através de uma proposta de captação do real, em
que a câmera filma o que existe independentemente. Em seu “ deciframento
comunista “ do mundo, Vertov idealiza a câmera oculta, capaz de filmar a
realidade sem alteração. Porém, embora ousado e ainda hoje extremamente
inovador, o método de Vertov peca por um aspecto primário: Na construção ou na
reordenação de imagens, é impossível a neutralidade ideológica do olhar. A
câmera é um meio técnico de captação de imagens, mas a escolha da natureza
destas, dos ângulos filmados e por fim do ritmo orgânico da montagem, não são
estabelecidos sem um juízo ideológico a priori, esteja este a nível consciente
ou inconsciente. Isto é antes do cinema,
a essência da visão: O olhar em sua dimensão subjetiva passa inevitavelmente
por uma compreensão sensível do mundo, determinado historicamente e que não está isento de interpretações, de
ideologias. Por maiores que sejam os esforços de Vertov, em seus filmes está
explicito sua visão política : O de registrar sob o ponto de vista
revolucionário a vida do povo russo e a construção do socialismo.
O grande expoente que ilustra o projeto visual
do pensamento cinematográfico de Vertov, esta presente no clássico UM HOMEM COM UMA CÂMERA, de 1928 . Nele faz-se presente quase que um jornalismo modernista:
Registra-se o cotidiano que sob o ritmo de reconstrução flagra as venezianas da
janela intercaladas com os belos cílios de uma jovem cujo o olhar capta a
sintonia com a industrialização que caminha vertiginosamente por entre
chaminés, esteiras sem mais valia, jornais espalhados pelas ruas que se movem
com a velocidade de automóveis que se deixam ultrapassar por trens, em meio a
força do atleta que junto a bailarina metaforizam o esforço de simplesmente
carregar a Revolução no corpo...
A simplicidade do cotidiano é supervalorizada e retomada na sua dimensão
ritualística: Ao contrário do condicionamento da sociedade burguesa em que o
trabalho rouba o tempo de vida( e pequenos hábitos circundam na escravização do
cotidiano); em Vertov estes pequenos hábitos são revelados em sua beleza:
Escovar os dentes, lavar o rosto, trabalhar numa relação harmônica e não
alienada com as máquinas . A Revolução também estaria na cultura, num novo
sentido marcado pelo nascimento de uma criança, com leite jorrando para o lado de fora do mundo,
as plantas crescendo, tudo ligado a uma dimensão plástica e revolucionária da
vida.
Trata-se de um redescobrimento da vida, que no sentido coletivo do
socialismo poderia liberar a criatividade, humanizando as massas. O lúdico e o
rotineiro são pensados enquanto instrumentos de poesia.
Eisenstein e Vertov alfinetavam-se constantemente. Fervorosas
divergências derretiam o gelo na Rússia...Nas polêmicas travadas estavam em
jogo dois pontos de vista sobre princípios filosóficos da sétima arte. Tal
embate entre um cinema revolucionário de fundo cênico e ficcional e um cinema
que aboli estas categorias, deve ser compreendido na conjuntura cultural
revolucionária da época: Eram os anos das vanguardas artísticas, e as posições
estéticas não admitiam doces reconciliações mas sim produtivos debates sobre o
significado social e político da arte.
Mas para além de questões estéticas e pessoais, o conflito teórico entre
Eisenstein e Vertov, expressa o desejo de construção de uma nova sociedade,
enchendo nossos olhos órfãos por polêmicas artísticas. Como fora dito na
introdução deste trabalho, a engenharia contra revolucionária do estalinismo
construiu o medo e a paranóia na cena cultural russa. Por fim, é preciso
através do olhar histórico compreender a herança de um projeto revolucionário
abortado, em que estava indissociado arte e política.
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