terça-feira, 14 de agosto de 2012

EQUÍVOCOS SOBRE A ESTÉTICA MARXISTA


...Segundo a concepção da estética marxista, o traço dominante dos
grandes realistas é, pois, a tentativa apaixonada e espontânea de
captar e reproduzir a realidade tal como ela é, objetivamente, na sua
essência. A esse respeito, são numerosos os equívocos correntes acerca
da estética marxista. Costuma-se repetir que ela subestima a ação do
sujeito, que ela subestima a eficácia do fator artístico subjetivo na
criação da obra de arte. Costuma-se confundir Marx com aqueles
vulgarizadores que permanecem teoricamente presos ás tradições
naturalistas e apresentam como marxista o falso e mecânico objetivismo
dessas tradições. Tivemos, contudo, ocasião de constatar que um dos
problemas centrais da concepção marxista é a dialética do fenômeno e
da essência, e descoberta e enunciação da essência no contexto das
contraditórias manifestações fenomênicas. Ora, se não cremos que o
sujeito artístico " crie " ex nihilo algo de radicalmente novo, se
reconhecemos que ele descobre uma essência que existe
independentemente dele(e não é acessível a todos e permanece por muito
tempo oculta até para o maior dos artistas), nem por isso a atividade
do sujeito cessa ou vem diminuída em seja lá o que for.
Portanto, se a estética marxista identifica o maior valor da
atividade criadora do sujeito artístico no fato dele assumir nas suas
obras o processo social universal e torna-lo sensível,
experimentalmente acessível, e se nessas obras se cristaliza a
autoconsciência do sujeito, o despertar da consciência do
desenvolvimento social, nada disso implica em uma subestimação da
atividade do sujeito artístico, e sim, pelo contrário, temos uma
legítima valorização desta atividade, mais elevada do que a de
qualquer outro critério precedente.
Ainda aqui, como em tudo, o marxismo nada cria de " radicalmente
novo ". Já a estética de Platão, a sua doutrina do reflexo artístico
das idéias, aflorava essa questão. Mas também neste campo o marxismo
recoloca sobre seus próprios pés a verdade que os grandes idealistas
tinham descoberto invertida. Por um lado, o marxismo não admite, como
vimos, uma exclusiva contra-posição entre fenômeno e essência,
procurando a essência no fenômeno e o fenômeno na relação orgânica com
a essência. Por outro lado, captar esteticamente a essência,a idéia,
não constitui para o marxismo um ato simples e definitivo e sim um
processo; um processo que é movimento, aproximação gradual da
realidade essencial(mesmo porque a realidade mais profunda e essencial
é sempre apenas uma porção daquela totalidade do real que integra até
mesmo o fenômeno superficial).
Por isso, se o marxismo realça a objetividade mais radical do
conhecimento e da representação estética, acentua também, ao mesmo
tempo, o papel indispensável do sujeito criador, já que este processo,
esta aproximação gradual da essência oculta, é uma estrada que se abre
somente para os maiores e mais perseverantes gênios da criação
artística. A objetividade da ciência marxista chega ao ponto de não
reconhecer nem mesmo á abstração - a abstração verdadeirmente sensata
- a propriedade de mero produto da consciência humana, e demonstra, ao
contrário, especialmente para as formas primárias do processo
social(isto é, as formas econômicas) , de que modo a abstração se
realiza e opera á base da propria realidade social e de seus objetos.
Mas, para poder acompanhar o processo de abstração e entender a
fantasia, trilhar o caminho dela, elucidar os seus desenvolvimentos, é
preciso concentrar em figuras e situações típicas o tecido do processo
global, do conjunto da evolução social. E, para isso, requer-se um
gênio artístico da máxima grandeza.
Vemos, por conseguinte, que a objetividade da estética marxista não
se acha absolutamente em contradição com o reconhecimento do fator
subjetivo da arte. Mas ainda assim que deveremos considerar esta idéia
de outro ângulo diferente:Ás nossas considerações precisamos
acrescentar que a objetividade marxista não significa neutralidade em
face dos fenômenos sociais. Exatamente porque - como justamente
reconhece a estética marxista - o grande artista não representa coisas
ou situações estáticas, e sim investiga a direção e o ritimo dos
processos , cumpre-lhe, como artista, definir o caráter de tais
processos. E, numa tomada de consciência deste gênero, já está
implícita uma tomada de posição. A concepção segundo a qual o artista
seria só um espectador passivo desses processos, situar-se-ia acima de
tudo e qualquer movimento social(a flaubertiana impassibilité) é, no
melhor dos casos uma ilusão, uma forma de auto-engano; mas quase
sempre não passa de uma evasão, uma fuga ante os grandes problemas da
vida e da arte. Não há grande artista em cuja representação da
realidade não se aproximam , ao mesmo tempo, também as suas opiniões,
desejos, aspirações apaixonadas e nostálgicas. Será essa constatação
contraditória em relação á nossa assertiva de que a essência da
estética marxista é a objetividade?
Entendemos que não. E, para poder destrinchar a questão, devemos
lembrar ligeiramente o problema da chamada arte de tendência ou de
tese, procurando esclarecer qual seja a interpretação marxista do
problema e quais as relações dessa interpretação com a estética
marxista. O que é a tese? Numa acepção superficial, é uma tendência
política ou social do artista que ele quer demonstrar, defender e
ilustrar com a sua própria obra de arte. É interessante e sintomático
que Marx e Engels sempre se exprimissem com ironia a respeito de tais
construções artificiosas, quando tratavam de uma arte dessa espécie. A
ironia deles torna-se especialmente áspera quando verificam que o
escritor, para demonstrar a verdade de qualquer proposição ou
justificação, violenta a realidade objetiva, deformando-a. (Vejam-se
em particular, as observações críticas de Marx sobre Sue). Mesmo
quando se trata de um grande escritor, Marx protesta contra a
tendência para utilizar toda a obra ou mesmo um só personagem como
expressão direta e imediata das opiniões do autor, o que priva o
personagem da autêntica possibilidade de viver até o fundo suas
próprias faculdades vitais segundo as leis íntimas e orgânicas da
dialética de seu próprio ser. E é isso que Marx desaprova na tragédia
de Lassale(...).
... No entanto, semelhante rejeição da literatura de tendência não
significa de maneira alguma que a verdadeira literatura não implique
em uma tendência. Observe-se que a realidade objetiva, em si mesma,
não é uma caótica mistura de movimentos sem direçãoe sim um processo
evolutivo que possui internamente tendência fundamental própria dele.
O desconhecimento desse fato, desse dado, e uma tomada de posição
falsa em face da sua existência ocasionam sempre grandes prejuízos a
qualquer criação artística.


Georg Lukács, 1945.

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