A ação surrealista não se limita a um tempo cronológico: é preciso insistir no fato do surrealismo ser uma postura e um estado de espírito baseados na busca pela poesia, pelo amor e pela liberdade, presente em diversos momentos da História. No entanto, mediante o surgimento da organização e do desenvolvimento histórico do movimento surrealista a partir da década de 1920 em Paris, podemos considerar que a marcha rumo ao maravilhoso foi executada por uma série de iniciativas comprometidas com as idéias nascidas em torno de intelectuais dispostos a sistematizar este que podemos considerar o maior exemplo de revolta do nosso tempo. As iniciativas do Surrealismo apóiam-se evidentemente na contramão do nacionalismo e das convenções que fundamentam os valores estabelecidos. Ao considerar enquanto elo magnético a essência universal do homem, isto é a noite infinita que nos une num único corpo desejoso, o Surrealismo possui uma dimensão internacionalista. Em detrimento da necessidade dos militantes de esquerda debaterem cada vez mais sobre as lições revolucionárias do Surrealismo, a reflexão que se segue visa compreender a ação surrealista enquanto potencial transformador da limitada realidade permitida pela sociedade contemporânea. Devemos ter em mente que a experiência surrealista e o seu legado(sobretudo artístico) é do interesse de todos e como lembra André Breton(1896-1966) não “ tem nenhuma chance séria de acabar enquanto o homem persistir ( logicamente) em distinguir um animal de uma chama ou de uma pedra “(Breton, André. O SEGUNDO MANIFESTO DO SURREALISMO).
1.1- O SURREALISMO ENQUANTO MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO.
O Surrealismo é uma prática poética que
consiste no questionamento das bases da cultura dominante. Entendido enquanto
um desdobramento radical da rebelião romântica que nasce no crepúsculo das
Revoluções burguesas, as idéias surrealistas obedecem ao levante da imaginação
contra as opressões do mundo externo ao individuo. Este mesmo conjunto opressor
é produto das forças sociais promotoras da miséria tanto no sentido econômico
quanto espiritual. O perpétuo fluir da cultura é análogo, e na maioria das
vezes equivalente, a existência de um calabouço que o homem carrega nas escotilhas
da mente. Para que a voz do desejo pudesse novamente iluminar os rumos da vida
humana, foi preciso redescobrir o poder
alquímico da linguagem e do erotismo, cuja a geografia está no corpo da mulher.
Quer dizer, a poesia e o amor praticados, vividos e experimentados para além
das correias de transmissão de uma realidade social fundamentada no controle e
na castração.
Todo ímpeto revolucionário na vida em
sociedade, esteja este em uma dimensão que abrange o político ou o cultural(ou
ainda o fim da fronteira entre ambos) obedece a idéia e a constituição de um
movimento. Como é amplamente difundido, o Surrealismo não foge a regra: em meio a aventura espiritual que arranca o
individuo para foras das relações psíquicas pré-determinadas, impulsionando
assim o aprofundamento do real mediante um mergulho no inconsciente por diferentes e
venenosas vias(o sonho, o automatismo, a deriva, o acaso, a paixão, o amor
sublime, etc), o Surrealismo se configura também enquanto ação coletiva(voltaremos
as particularidade revolucionárias do Surrealismo mais adiante). Os resultados
destas ações já são bem conhecidos: Publicações , exposições, reuniões,
intervenções, etc. O Surrealismo envolve a sólida defesa de uma subjetividade
renovada, ultrapassando assim o mundo das aparências. Compreender a História do
movimento surrealista significa encontrar um exemplo radical de combate ás
diferentes formas assumidas pela ordem estabelecida: o totalitarismo, esteja
este sob a forma da ditadura política ou da sociedade de consumo, torna-se alvo
da revolta surrealista.
Na urgência da preponderância do desejo sobre as formas de controle
social, vislumbramos uma radical operação no âmbito da linguagem. Esta última
salta do plano da representação para configurar-se enquanto posição perante a vida. Obviamente trata-se
de uma busca radical cujo o vetor revolucionário expresso na trindade poesia,
amor e liberdade pressupõe a ruptura com o mundo tal como ele está estruturado.
Como disse Walter Benjamin(1892-1940) em seu célebre ensaio SURREALISMO:
O ÚLTIMO INSTANTÂNEO DA INTELIGÊNCIA EUROPÉIA, desde Bakunin(1814-1876) não
existia na Europa um conceito tão radical de liberdade quanto aquele que o
Surrealismo apresenta. Podemos dizer seguramente que a afirmação do filósofo
alemão aplica-se aos dias de hoje, acrescentando ainda que o pensamento
surrealista não é e nem nunca foi uma
exclusividade européia. Apesar do Existencialismo de Jean Paul Sartre(1905-1980)
e Albert Camus(1913-1960) apresentar uma provocadora e pertinente concepção de
liberdade, nenhuma outra vertente trouxe como o Surrealismo uma prática
visionária capaz de converter correntes em areia e passos terrestres em passos
alados. Obviamente que não se trata do único movimento revolucionário da
cultura mas salienta-se aqui no entanto que o seu ponto de vista sensível é
indispensável para a emancipação humana e portanto pertinente para a luta
política e a elaboração de uma arte visionária.
A experiência surrealista é em primeira instância individual. Antes da
ação coletiva ela configura-se enquanto ação interna, modo de expressão
altamente libertário em que as possibilidades sensíveis dos indivíduos são
ampliadas pelo desejo revelado, incontrolável por excelência. Analogamente ao
anarquismo mais elementar, o Surrealismo insurge-se contra as imposições
externas do mundo civilizado sobre os domínios interiores do ser.
O conflito entre imposição social e desejo é resolvido através da
revolta, condição primordial para se ter acesso a liberdade, o que nos leva a
conclusão de que os surrealistas ilustram historicamente a combate travado
entre as forças do Id e do Superego. Muito antes de Wilhelm Reich(1896-1957)
politizar o diagnostico freudiano, o Surrealismo aprofunda os conflitos mentais
na direção de uma crítica que supera o confortável divã, associando a mutilação
emocional do individuo e as antinomias humanas á lógica mesquinha, ao Estado
tirânico e á repressão moral empreendida pela burguesia. Ou seja, não se trata
de um passeio seguro pelo inconsciente, cuja a chegada visa adaptar o ser
humano a ordem estabelecida. A expressão surrealista que restitui organicamente
a linguagem e a vida, é portadora de uma vontade de transformação.
Se o Surrealismo vislumbra o desejo enquanto o
motor da vida, logo a revolta que objetiva a liberdade é o motor da História.
Quem realmente compreende o Surrealismo está cansando de saber que não se trata
de um movimento artístico mas de uma postura existencial que faz uso da arte. Tendo
a sua voz minimizada nos debates atuais, longe o Surrealismo está em perder a
validade dos seus postulados. Sem dúvida que a recepção ao escândalo, inerente
as práticas surrealistas,tornou-se mais delicada em meio a fragmentação das
formas de consciência: enquanto a terceira Revolução industrial procurou
desarticular o proletariado revolucionário, o mesmo movimento ocorre de modo
paralelo na esfera da cultura a partir do esvaziamento das consideradas
manifestações de resistência e de oposição. Tal esvaziamento não é um problema
especificamente recente, afinal é
preciso notar já na época do Romantismo a espantosa capacidade do sistema
capitalista em assimilar a sua própria antítese. Mas ao contrário do que os
pessimistas apocalípticos afirmam, nunca se deve subestimar a força criativa na
ação intelectual: a dialética social permite que a neutralização não seja
definitiva na medida em que a descentralização do conhecimento através de
canais de informação, oferecem hoje um campo aberto para movimentos não
afinados com a ideologia dominante. Obviamente que isto demanda uma ação
sistemática, um esforço permanente para que “os iniciados” no Surrealismo
exprimam sem cansaço e sem sectarismo a sua mensagem. Como podemos ver a
ferocidade poética do Surrealismo é viva e pulsante(seja na ação dos grupos
surrealistas ou dos artistas surrealistas que agem individualmente).
Não sendo uma doutrina encerrada
num irredutível sistema de idéias, o Surrealismo atravessa os diferentes
períodos históricos desafiando pelo desejo a civilização ocidental fundamentada
tanto na exploração econômica quanto na repressão da sexualidade(o que
evidentemente não se limita ao coito, mas nas formas institucionais e
normativas do sexo). O Surrealismo é sobretudo um estado de espírito móvel que
assume formas específicas em épocas e lugares.
1.2- DA REBELIÃO ROMÂNTICA Á CRISE DA ARTE.
Não se compreende o Surrealismo fora da crise da cultura na História
contemporânea. Existe um abismo assustador que separa o projeto do Surrealismo das
imagens opressoras que resultariam naquilo que Guy Debord(1931994) intitulou de
sociedade do espetáculo. Os efeitos irracionais do espetáculo arquitetado nas
últimas décadas(sobretudo através do poder midiático) promove a ficção de uma
realidade que tem ocultada o seu funcionamento. Este estado de coisas será
totalmente visível na segunda metade do século XX. Antes, porém, já encontramos
os primeiros atos deste espetáculo que opõem-se com toda dedicação a
restituição integral do homem consigo mesmo.
No início da Idade Contemporânea
a ferramenta Iluminista e os disparos do canhão nacionalista erguem a razão
enquanto parte central na constituição do esqueleto de um novo mito. As
Revoluções burguesas são a ante sala de uma crise cultural que atenua os
antagonismos humanos em praticamente todas as esferas da existência. Junto á
herança racionalista do século das luzes, a burguesia constrói um mito
completamente separado das novas condições produtivas da sociedade. A partir
das relações de trabalho que flagram a exploração da classe operária, a
alienação passa a pontuar a soma das relações humanas: a cultura apresenta-se
enquanto um conjunto de atividades separadas da totalidade social. Tendo uma
pretensa existência autônoma, desvinculada portanto da vida(a um só tempo
social e psíquica) a cultura da era burguesa expressa a alienação social . O
conseqüente desencantamento de uma sociedade em que a Beleza passa a estar
condicionada pelo lucro, impulsiona a rebelião romântica: a partir do século
XIX o artista e o intelectual movem-se pelo primado da crítica, da rebeldia e
do protesto contra a mercantilização da vida. O individuo teria nas suas
obscuras camadas interiores um forte potencial de reação que deveria redefinir
o sentido da vida, em forte oposição ás tentativas de condicionamento do
pensamento. Estamos portanto diante das raízes do movimento surrealista, ainda
que pelas vias indiretas do Romantismo.
O homem romântico vê no passional e no insano as qualidades de um novo
mito, fundado na paixão e na liberdade. Se do ponto de vista político o
Socialismo surge enquanto projeto de destruição do capital, do ponto de vista
da subjetividade e da transgressão dos costumes, as figuras do poeta e do
artista apresentam-se enquanto donas de uma atividade dotada de um não
conformismo absoluto. Paralelamente a rebeldia romântica(que se desdobra por
exemplo na criação literária dos simbolistas) e a cosmogonia proporcionada pela
poesia(amplificadora sem limites da liberdade individual), a cultura depara-se
com a mais sombria das filhas do cientificismo: a absorção técnica da
experiência estética para fins capitalistas. Sendo assim a criação de um
mercado cultural expõe o constrangimento de converter a arte em mercadoria: a
arte, o grande espelho da História, encontra-se agora acossada pelas determinações
econômicas e políticas do capitalismo.
Não será gratuito que ao longo do século XX a racionalização prévia da
indústria para a domesticação do aparelho sensorial, fez e faz da Estética uma
base fundamental para o exercício da manipulação e da consolidação da ordem
capitalista. Em oposição a isso (mas não apenas) as novas correntes estéticas
da arte moderna encarnam o combate declarado ao conjunto da cultura da era
burguesa. As rupturas formais da arte moderna, expressas nas primeiras
vanguardas, procuraram romper em realidade não apenas com os procedimentos de
representação clássica(o cordão umbilical da cultura greco-romana que várias gerações de artistas europeus
mantinham), mas também com a moral burguesa. Porém, a revolta da arte moderna
estreitou em grande parte os seus limites com a conversão mercadológica que é precedente de uma dimensão estética: para o apetite industrial independe se a arte
é clássica ou moderna. A estes impasses de absorção da arte que os movimentos
modernos sofreram , o Dada e o Surrealismo respondem não pelo terreno
formalista mas pela expressão iconoclasta, da desestruturação dos valores
ocidentais.
A alienação inerente ás práticas culturais coniventes com o mercado, o
Dada não conseguiu responder totalmente com o seu negativismo: o seu ímpeto de
destruição e de aborto frente a qualquer determinação prévia ou programática,
carecia de um projeto de reconstrução do conhecimento humano. Foi neste último
aspecto que o Surrealismo sem rejeitar a arte enquanto meio de expressão,
assumiu enquanto missão espiritual e histórica. Sua especificidade nasce de um
projeto radical, que foi compartilhado por poucos homens. Isto não deixa de ser
uma decorrência do fracasso registrado pela não realização do CONGRÉS DE I`
ESPIRIT MODERN em 1922. Tendo a frente membros do futuro grupo surrealista de
Paris e já deflagrando a crise no movimento Dada na capital francesa, a
tentativa não consolidada deste congresso representou na verdade a
impossibilidade de uma unidade entre as correntes do pensamento moderno.
1.3- A FASE HERÓICA DO MOVIMENTO SURREALISTA
Vejamos agora o auge do Surrealismo enquanto movimento organizado, isto
é, o período que corresponde as décadas de vinte e trinta. Evidentemente que o
movimento continuou (e continua) após estas duas citadas décadas, entretanto
suas lições e manifestações fundamentais encontram-se neste recorte histórico.
Encontramos em Paris, ou seja o centro do pensamento ocidental no início
do século, indivíduos que após a malograda tentativa de um congresso que
superaria em tese os limites históricos do Dada em França, encontram-se
isolados em um pequeno grupo(deve-se lembrar que a crise do Dada em Paris não determinou
o fracasso mundial deste movimento, como nos mostra o caso dos dadaístas
alemães, altamente politizados e coerentes). Não é verdade que o Surrealismo
seria uma espécie de dissidência Dada, afinal antes da adesão de nomes como
André Breton e Louis Aragon(1897-1982) ao movimento Dada, estes e outros já
praticavam a escrita automática e estudavam atenciosamente as descobertas
psicanalíticas, ou seja elementos que se inserem na pesquisa surrealista.
Foi mais do que natural o fato de
um pequeno grupo de intelectuais dotados de um projeto ousado de idéias, se
fechassem em um circulo afim de se auto afirmarem. O problema é que reunidos
dentro de uma seita este mesmo grupo acabaria por restringir o seu alcance
libertador a poucos homens, exigindo o controle das práticas derivadas do seu
projeto. No caso do Surrealismo encontramos diversos exemplos de intelectuais e
artistas que por não se sujeitarem aos procedimentos de normatização do grupo,
acabaram não em negar o movimento mas amplia-lo numa direção que não permite a
existência de lideres controladores. É preciso separar aqui o detrator do
verdadeiro surrealista(este em muitos casos chega a rejeitar a expressão
“surrealista “). O primeiro recusa o Surrealismo pelo seu compromisso com a
ordem, enquanto o segundo preza por sua independência. Apesar deste mal passo
traduzido nas restrições de grupo, o Surrealismo demonstrou nas décadas de
vinte e trinta a força de suas idéias.
Mesmo vivendo alheios aos valores dominantes da sociedade, os
surrealistas desde a publicação do Primeiro manifesto em1924 , nunca abstiveram-se
de uma atuação pública que passa obrigatoriamente por um compromisso com a
revolta e com o descrédito do mundo burguês. A História registra que o
Surrealismo no seu auge responde contra a separação entre arte e vida, entre os
contrários que escravizam o homem: entre o sono e a vigília responde com a
realidade absoluta, entre a linguagem e a vida responde com o automatismo,
entre a moral cristã e a hipocrisia responde com o escândalo, entre a
casualidade e o desejo responde com o acaso objetivo, entre a carne e o
espírito responde com o amor louco, entre a rebeldia individual e a Revolução
social responde com a conjugação entre Arthur Rimbaud(1854-1891) e Karl
Marx(1818-1883), etc.
Durante a primeira metade do século Paris se apresentava enquanto o
centro explosivo das novas idéias. Pelas suas convulsivas alamedas todos os
passos levavam a aventura do novo, da ânsia por liberdade e por uma redefinição
da vida em plena modernidade. André Breton foi capaz de não se desviar nem por um
momento sequer da revolta necessária para uma transformação efetiva da vida.
Junto a outros grandes revolucionários como o extraordinário poeta Benjamin
Péret(1899-1959), Breton soube unificar a partir de um exame detalhado e de uma
identificação apaixonada com autores e tradições que antecedem a Revolução
surrealista em diversos aspectos, as
bases de uma nova identidade poética: a gnose, a pulsante linha apaixonada que
liga os trovadores aos românticos e a energia satânica de autores como
Lautréamont(1846-1870). Intelectualmente abertos ao diálogo alquímico com
diferentes vertentes do pensamento,os surrealistas sentavam-se a mesa das
videntes e ao mesmo tempo acenavam para Hegel( 1777-1831) e Marx. Como podemos
notar, o movimento surrealista em seus primórdios era um fenômeno do pensamento
cuja a natureza arrojada respondia com fervor aos impasses culturais do período
entre guerras. Sob os escombros da Primeira guerra mundial(1914-1918) os
surrealistas mergulham nestas referências citadas e articulados junto as
atordoantes revelações da Psicanálise, buscam um novo estágio para o
entendimento da vida.
O movimento surrealista durante
os anos vinte via na reformulação da vida psíquica um modo de revolucionar a
sociedade. As revistas, o escritório de experiências, os panfletos e a
selvageria exemplar eram entendidos enquanto meios de reação contra a repressão
ás desconhecidas zonas do ser: reservatório inesgotável por onde se é possível
mudar verdadeiramente a vida. Ao passo que a economia desigual cerceia a
produção e a organização política limita a liberdade, as forças criativas
produtoras de cultura não podem sujeitar-se por muito tempo ao mesmo componente
tóxico da lógica, sendo necessária a entrega do individuo ao seu próprio
universo interior.
O sonho e a fantasia são fontes produtoras de imagens que desafiam os
mecanismos de controle mental. Muito antes da publicidade se apropriar destes
terrenos sagrados localizados no próprio homem, para fins de manipulação e de
manutenção da ordem, os surrealistas lá fixam morada na aposta na emancipação
humana. Não hesitaram portanto em declarar guerra á figura da autoridade, seja
ela médica, policial ou religiosa. A loucura no Surrealismo não é diagnóstico
de doença mas uma força primitiva anterior á civilização, um anarquismo
cristalino de ordem poética, isto é, de prática da poesia para além da vã
literatura.
Ao mesmo tempo, anteriormente a publicação do manifesto de 1924, Breton
e outros falaram da necessidade de se frear as atividades experimentais
correspondentes “ a era dos sonos”: efeitos desagradáveis expunham a
necessidade de conservar aquilo que Freud( 1856-1939) chamou de Instinto de
preservação(alguns anos mais tarde, Breton ao refletir sobre o conceito de
liberdade, usa o exemplo de Nadja, protagonista do seu romance convulsivo, para
reafirmar este primado psicanalítico). Naquilo que implica a fase inicial do
movimento em França, aonde se destacam as presenças vulcânicas de Robert
Desnos( 1900-1945) e Antonin Artaud(1896-1948),
notamos um clima febril e furioso que ameaçava a estabilidade psicológica do
grupo e poderia leva-lo a gastar de forma ineficaz toda a sua munição.
Se a loucura deveria ser freada para garantir o alcance revolucionário
do movimento, então foi necessário uma volta a pesquisa de linguagem e adesão
ao compromisso político para desestabilizar o capitalismo e criar um contexto
favorável aonde o homem pudesse viver de acordo com o seu desejo. Deparamo-nos
a partir de então com duas situações básicas no movimento: de um lado os
surrealistas não se curvam a nenhuma forma de controle exercido por nenhum
centro de poder(por exemplo, após a adesão ao marxismo, será comum o choque
entre as idéias libertárias do Surrealismo e o Partido Comunista francês). Por
outro lado e paradoxalmente, o movimento torna-se cada vez mais uma estrutura
centralizada que engessa a margem de ação de vários surrealistas. As clássicas
fulminações e as dolorosas expulsões são resultados desta atmosfera
autoritária. Sabe-se que Breton não tirou proveito pessoal disso, mas este
modelo ultrapassado de movimento tende a privilegiar membros e a manipular
fatos. A História do Surrealismo está em
divida com uma série de indivíduos que não se curvaram aos ditames de grupos e
por isso trouxeram contribuições autônomas para a aventura surrealista.
Intelectuais reunidos em torno de nomes como Georges Bataille(1897-1962), nos
mostram que aquilo que podemos entender por Surrealismo não depende de um único
modelo de ação.
Apesar da crescente camisa de força,o movimento continua ousando no
campo do desejo, desafiando tudo aquilo que é imposto pelo racionalismo.
Retomando a tradição do flâunier, os surrealistas viam no passeio á deriva a
possibilidade de presenciar o
imprevisto, de recuperar a livre interpretação poética no espaço da
grande cidade acorrentada pela razão. Trata-se do deslocamento do desejo sem
fins pré estabelecidos. O encontro do objeto do desejo acaba direcionando os
passos para o território amoroso.O amor será defendido pelos surrealistas como
em nenhum outro movimento do século passado.O Surrealismo possui uma radical concepção do amor: através do
encontro entre dois seres únicos ocorre a partir de uma sexualidade despudorada
uma fusão cósmica. O homem e a mulher crentes na aposta do encontro com o ser
que lhe é correspondente, retomam a trilha em direção ao mito do andrógino
primordial. Seja nas palavras de Breton(amor louco) ou de Péret(amor sublime) o
Surrealismo apresenta uma busca que supera a triste situação esquizofrênica
entre o casamento e a libertinagem. A mulher é celebrada e defendida enquanto a
promessa da felicidade humana. O amor sem pudores e sem hipocrisia levaria até
a Idade de ouro, aonde os males do patriarcalismo seriam evaporados por uma
nova era. Não sendo uma inclinação
espiritual que resulta necessariamente em felicidade(as condições sociais que
separam os seres humanos mediante um regime de exploração e de alienação,
interferem na escolha do ser amado), o amor segundo o Surrealismo é uma busca
no seu sentido mais desvairado e incerto.
Diante do atual contexto, isto é após a chamada Revolução sexual das
décadas de sessenta e setenta, a concepção surrealista não deixa de ser uma
sublimação ascendente, uma postura que nega a sexualidade sem horizonte de uma
época de consumismo e vazio existencial. No entanto, é preciso estar atento ao
fato do discurso do Surrealismo sobre o amor não se tornar uma imposição que vise
reprimir outros discursos sobre o desejo: lembremo-nos por exemplo de uma
infeliz intolerância do movimento frente a
homossexualidade(como ficou claro a partir da ENQUETE SURR LA SEXUALITÉ em 1928). O amor monogâmico e heterossexual do
Surrealismo não corresponde a totalidade dos desejos humanos e seu projeto deve
coexistir com outras maneiras de viver e exprimir a sexualidade .
No campo da arte propriamente o Surrealismo trouxe uma liberdade
criativa que resultou em técnicas e expressões que apresentam a Beleza
convulsiva contra as concepções de Beleza estática e normativa. A escrita
automática, a fusão entre gêneros narrativos no mesmo texto, o método paranóico
crítico na pintura, a contribuição onírica ao chamado cinema de poesia, as
experiências cênicas que culminariam no teatro da crueldade, são apenas alguns
exemplos da arte revolucionária empreendida pelos surrealistas: revolucionária
pelo fato de desafiar os limites entre o mundo interior e exterior dos homens
através da experiência artística que por sua vez questiona as convenções
sociais e exige uma outra forma de organização política na qual o desejo
estaria no primeiro plano. A arte dos surrealistas requer uma nova percepção e
estimula o questionamento e a rejeição dos valores dominantes.
Podemos falar sem dúvida que o
pensamento surrealista seja no campo do amor, da arte ou da política, ambiciona
uma transformação radical do ser humano. Do ponto de vista político a adesão ao
marxismo ocorre a partir de um forte componente anarquista. Por mais paradoxal
que pareça ser, a tensão( ou seria confluência ?) entre as bandeiras negras e as bandeiras
vermelhas traz uma contribuição original ao pensamento político. Se em um
determinado momento aderem ao trotskismo e em outro ao anarquismo é pela
tentativa de conciliar as práticas de emancipação do Surrealismo com uma
prática política coerente com a emancipação do próprio proletariado. O
documento MANIFESTO POR UMA ARTE REVOLUCIONÁRIA INDEPENDENTE assinado por
Breton e Leon Trotski( 1879-1940) em 1938, nos dão apesar dos limites
históricos circunstanciais da sua redação, a idéia essencial de que para o
Surrealismo a liberdade e a independência de suas ações(no plano da arte por
exemplo) são pressupostos para toda e qualquer militância.
Apesar de suas conquistas o movimento surrealista encontraria uma série
de obstáculos preparados pela sociedade burguesa. Vejamos a seguir alguns dos
impasses do movimento.
1.4- A CRISE DOS MOVIMENTOS REVOLUCIONÁRIOS
Data-se da década de trinta em diante uma proliferação de livros,
quadros, filmes e revistas que contrariamente aos interesses do movimento
surrealista resultaram em uma espécie de “sucesso cultural “. Apesar do
escândalo e da rebeldia, os surrealistas encontram-se num mundo em que a industrialização
da arte levaria ao acirramento da separação entre cultura e sociedade, isto é,
a linguagem, mesmo a surrealista, teria a sua força revolucionária limitada
pelas condições objetivas do espetáculo mercantil. Isto implicaria no fim da
imagem enquanto meio de transformação da subjetividade? Seria necessário o
Surrealismo abrir mão da criação artística para as suas sondagens interiores? Em primeiro lugar não se concebe o homem sem a
linguagem: este é produto e produtor desta. Para os surrealistas a linguagem é
um ponto de partida para a ação transformadora. A imagem enquanto substrato
orgânico do desejo é concebida no Surrealismo como a negação do racionalismo que pontua grande
parte da conduta humana: trata-se da busca pela recuperação da totalidade do ser. Não significa combater
a ordem através da representação mas de converter o signo á coisa significada.
No entanto, dentro do sistema capitalista, aonde a mercadoria cultural impõe a separação
entre a arte e a vida, o Surrealismo vem
sendo como já dissemos anteriormente, alvo de reducionismo artístico. Ao
tornarem-se referências para a arte e a literatura a obra dos surrealistas se
converteria em patrimônio da cultura oficial: pensemos nos poemas de Paul
Éluard(1895-1952) ou ainda na pintura de Max Ernst(1891-1976) e Joan Miró(1893-1983)
, por exemplo. Em meio as exposições internacionais de arte e a criação de
vários coletivos surrealistas pelo mundo(sobretudo a partir dos anos quarenta),
o movimento surrealista se via ameaçado pela absorção do sistema.
A problemática da arte enquanto mero produto a
serviço do mercado é uma questão que ocupou vários movimentos europeus de
contestação durante o pós-segunda guerra. Ao romperem com o Surrealismo para
criarem movimentos autônomos(o que na prática não ultrapassa o âmbito da
influencia surrealista, alguns até mesmo configurando-se enquanto dissidências
do movimento surrealista), tais
movimentos caem no retrocesso da antiarte, cuja a raiz é o Dada. Longe deste
artigo desclassificar os movimentos de antiarte, no entanto frisamos que a
rejeição aos procedimentos de criação plástica e literária não resolvem por si
só o problema da expressão na era do capitalismo monopolista. Tanto é que estes
grupos desenvolveram um tipo de intervenção urbana que migraria definitivamente
para o campo estrito da ação política. O fim da fronteira entre cultura e
política, a Internacional Situacionista procurou responder com muita arrogância
e pouca consistência poética. Embora nomes como Guy Debord procurassem superar
com violência e honestidade o beco sem saída da criação cultural, pode-se dizer
que os situacionistas não eram mais eficazes com seus métodos espontâneos de intervenção e
de apropriação de imagens(tais ações tendem a diluir-se em meio a organização
autoritária do espaço urbano, composto pelos signos do grande capital).
De que maneira o movimento surrealista pode manter a sua declaração de
guerra pela independência mental? Devemos observar que a crise do movimento
surrealista é parte integrante da crise do conjunto dos movimentos
revolucionários(na política e na arte). Tratando-se especificamente de movimentos artísticos e de movimentos
culturalmente mais amplos, a absorção técnica(já referida) exercida pela
cultura de massa(mas que dialeticamente abre novas brechas, como já afirmamos
também) tem causado graves prejuízos ao espírito. É preciso debruçarmo-nos
sobre o atual contexto do imaginário, enquanto um obstáculo relativo para o
Surrealismo e outros movimentos. Relativo porque não se trata de absolutizar um
único aspecto para determinar a crise
atual.
1.5- O IMAGINÁRIO NA FASE DO CAPITALISMO MONOPOLISTA.
As
representações mentais são hoje indissociáveis da realidade mercantil? Perante
a chamada liberdade de representação, análoga ao liberalismo burguês, revela-se
um censor não muito identificável mas muito poderoso: a imagem enquanto
expressão única da mercadoria estaria perdendo a sua dimensão interior ou
particular. As separações cada vez mais dilacerantes entre o indivíduo e o seu
desejo(este estaria reduzido ao ímpeto do consumo e da conseqüente coisificação
do universo) colocariam em questão a criação
artística no plano surrealista. No entanto, isto não pode ser
absolutizado. A imagem é um campo de combate no qual o quase esmagamento do
ponto de vista surrealista exige a contrapartida de iniciativas e organizações
revolucionárias para se fazer oposição as atuais banalizações. Se os meios de
comunicação de massa saturam dentre outras coisas obras surrealistas, isto não
implica necessariamente no abandono da pesquisa interior. O segredo de um sonho
ou uma paixão desvairada expressos nas linhas de um verso ou de um desenho, são
imunes ao Império da mediocridade. A crise revolucionária da qual o Surrealismo
é parte não pode ser superada pela
ocultação de sua prática como já foi defendida por muitos surrealistas. É
preciso que a experiência surrealista esteja no horizonte espiritual daqueles
que lutam pela transformação concreta da realidade. As motivações internas do
Surrealismo são indispensáveis para esta transformação pois elas se dão numa
área do conhecimento em que os censores do capital podem agir muito
debilmente(um livro de poemas surrealistas pode ser comprado, mas o seu efeito
desagregador no individuo não pode ser calculado pelo preço ou por números
rasteiros). O ponto de vista sensível do Surrealismo não é de massa, mas sim
uma possibilidade revolucionária ao alcance de qualquer um.
Prezados leitores: o Surrealismo está vivo!(como poderia ser
diferente?). Ele não se limita no quadro de influências estetizantes, na
banalização de sua grafia e nem mesmo nos grupos surrealistas atualmente
espalhados pelo mundo. A concepção surrealista deve cada vez mais estar ligada as práticas
culturais e artísticas dos militantes revolucionários(as lições expressivas do
Surrealismo ainda podem estar a serviço da Revolução, desde de que sejam
compreendidas em sua natureza autônoma). Invocando as verdadeiras implicações
históricas do Surrealismo, os militantes de esquerda encontram nele um forte
aliado contra o capitalismo, ou seja, um sistema que é inimigo declarado do
maravilhoso.
Afonso Machado
sim, sim!! excelente artigo!!
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