domingo, 31 de julho de 2016

Boletim Lanterna. Ano 06. Edição 29

Ao longo do segundo semestre o nosso blog irá promover, no Museu da Imagem e do Som da Cidade de Campinas, uma mostra de filmes intitulada CRÍTICA AO REALISMO SOCIALISTA. Trata-se da exibição de obras que correspondem a um problemático período da história do cinema soviético: durante as décadas de 30 e 40, o controle burocrático do stalinismo sobre a cultura se fez esteticamente através do Realismo Socialista. Algum leitor deve estar se perguntando qual seria o sentido de remexer nas ideias embalsamadas de Jdanov. Guiando-se pela dialética, eixo dinâmico do pensamento marxista, nossa publicação coloca em questão a experiência desastrosa do jdanovismo com o intuito de analisar quais seriam suas particularidades, seus erros, suas influências e suas heranças dentro do imaginário da esquerda mundial. Certamente que esta investigação histórica, realizada sobretudo no campo cinematográfico, irá gerar entre os espectadores de esquerda os mais variados julgamentos críticos sobre o assunto.
  Não importa a corrente política que um militante de esquerda se encontre: se faz necessário conhecer/debater a presença do Realismo Socialista dentro da produção artística. Se defendemos a necessidade da arte revolucionária, é preciso observar atentamente quais foram as razões políticas que levaram o jdanovismo a ser tomado por alguns(e por tanto tempo) como sinônimo disso. Dentro do marxismo, a compreensão dos elementos estéticos que constituem o Realismo Socialista, é atravessada por concepções teóricas capazes de pensar criticamente quais seriam as complexas relações entre arte e socialismo. Da crítica trotskista à crítica lukacsiana, da crítica frankfurtiana à crítica da new left, encontramos num amplo arsenal teórico instrumentos que devem apresentar para um público progressista este problema. Acreditamos que este debate, iminentemente marxista, deve se fazer inclusive dentro do cineclubismo.
 Ao exibirmos e comentarmos alguns dos filmes russos realizados segundo a perspectiva jdanovista, não realizamos apenas uma reflexão cinematográfica: o cinema torna-se um ponto de partida específico para analisarmos as implicações de um programa estético que teve longa duração em nossa história recente. Desde sua oficialização no I Congresso dos Escritores Soviéticos em 1934, o Realismo Socialista teorizado por Gorki e Jdanov tornou-se uma imposição burocrática dentro da política cultural da esquerda majoritária: literatura, pintura, escultura, artes gráficas, teatro , cinema e outros ramos da produção artística foram submetidos a este modelo. Produto cultural da tese stalinista do " socialismo em um só país ", o Realismo Socialista apresentava-se como parte de um projeto educacional para o proletariado : o culto à personalidade, a glorificação do chamado " herói do trabalho " e o nacionalismo estão entre as características de um projeto estético que, suprimindo a liberdade formal e banindo as técnicas de vanguarda, atendeu aos interesses políticos mais imediatos do Estado soviético: da propaganda aos planos quinquenais de Stálin  até a exaltação dos feitos do Exército Vermelho e da resistência do povo russo durante a Segunda Guerra Mundial(1939-45). 
 Tendo em vista que a estética do Realismo Socialista obteve projeção internacional dentro das organizações de esquerda durante o século passado, resta saber como ela é encarada hoje por militantes, cinéfilos e artistas socialistas. Cabe salientar que uma análise dialética no campo estético não se baseia nem na idolatria e nem na cega fulminação de obras de arte. Foi exatamente o movimento dialético na produção artística de esquerda que permitiu, em alguns casos, as mais variadas contradições formais entre a arte que se quis crítica/revolucionária e o Realismo Socialista. Diante do atual momento marcado pelo conservadorismo político, é comum encontrarmos teóricos e historiadores que confundem intencionalmente arte revolucionária com o Realismo Socialista. O intuito destes intelectuais é juntar e jogar tudo nas latas de lixo da história. De nossa parte, não jogamos nenhuma obra de arte no lixo: enquanto marxistas, observamos, estudamos, corrigimos, denunciamos e aprendemos com os encontros e desencontros entre arte e revolução. 
   
 

domingo, 24 de julho de 2016

Boletim Lanterna. Ano 06. Edição 28

As necessidades expressivas condicionadas pelo desenvolvimento técnico, estiveram irremediavelmente no século XX ligadas às revoltas estéticas da arte moderna. Ao revelar a crise e as contradições da cultura burguesa, o artista moderno abria um campo sensorial que muitas vezes sugeria a Revolução política enquanto saída concreta para os impasses históricos do capitalismo. Mas num belo dia ensolarado do final do século passado, quando reacionários saíram para passear e impedir a marcha da história, alguns pensadores anunciaram o enterro da modernidade artística. Nesta tentativa de sepultamento, não apenas os programas de vanguarda mas a energia utópica  e o papel revolucionário do proletariado foram atirados na mesma vala. Se não vivemos mais uma época de rupturas estéticas, a arte ainda está longe de superar sua crise. Se o capitalismo tenta cooptar a classe trabalhadora, ilusoriamente integrando-a aos bens de consumo, a miséria e a exploração ainda são fatos sociais. Portanto, arte e proletariado ainda representam possibilidades concretas de luta pela emancipação humana.
 Sabemos que historicamente existiu uma afinidade entre arte de vanguarda e socialismo revolucionário. Isto foi visível, por exemplo, na Revolução russa de 1917 e na tentativa frustrada da Revolução alemã de 1918. O totalitarismo político encarnado no fascismo e no stalinismo conseguiu duramente muito tempo destruir estes laços progressistas: a barbárie estética dos nazistas e o Realismo Socialista conseguiram reprimir os impulsos libertários da modernidade artística. O século XX deixou heranças reacionários e heranças revolucionárias, tanto no campo político quanto no cultural. Quais heranças andam falando mais alto? Atualmente, observamos no Brasil e no mundo um surto direitista que pretende varrer de nossa subjetividade qualquer projeto ou possibilidade para se pensar/sentir uma outra realidade. Bloqueando as forças políticas e culturais que realmente podem transformar a realidade, um amplo movimento conservador ameaça no mundo as principais conquistas da modernidade: liberdade expressiva, liberdade sexual, direitos das minorias e principalmente a existência de uma agenda socialista no movimento dos trabalhadores.
 Para se responder a este processo conservador, representado pelo que há de mais atrasado nos campos partidário, religioso e também artístico(neste último campo, nos referimos particularmente aos atuais fenômenos da indústria cultural), precisamos trabalhar. Artistas e intelectuais que enxergam na liberdade não apenas um valor mas um motor fundamental do humano, precisam ocupar os espaços da cultura com realizações. Reler as conquistas vanguardistas e desmascarar a ideologia liberal, são passos importantes para mostrarmos que a história não é um túmulo mas uma possibilidade de libertação total. Criar/falar em arte revolucionária, por exemplo, está longe de ser nostalgia: é uma necessidade histórica.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Boletim Lanterna. Ano 06. Edição 27

 Não é segredo que a atual onda reacionária atinge também a cultura. Trata-se do velho território de valores, práticas e representações que fundamentam a existência da classe dominante. As contradições do capitalismo em escala global, fazem com que a opinião pública conduzida pelas burguesias procurem trancar a arte numa redoma de vidro. Instalando um alarme de segurança na estética ou colocando tornozeleiras eletrônicas na expressão, o sistema pretende condenar a arte a uma espécie de inutilidade, existindo como uma exótica mercadoria. Hoje no Brasil, nos EUA e em alguns países europeus, a ação artística em seus aspectos mais ousados e contestadores é intimidada por um cotidiano castrado, fechado para maiores voos poéticos.
 De fato, a arte tomada como luxo espiritual é uma refugiada no reino da cultura: num mundo atravessado pela fome, pela violência urbana, por atentados, pelo fanatismo religioso e por um crescente conservadorismo político, qual seria a relevância da criação artística? Pensamos que a arte colocada numa redoma de vidro é uma resolução da cultura dominante. Diferentemente do que muitos pensam, defendemos uma concepção estética em que a arte é um elemento vivo, que participa das lutas pela emancipação humana. Não se trata de realizar obras de arte tomadas por um sentimento de bobo alegre, sonhando com a paz mundial trajando roupas de marca. Enquanto resposta ou ao menos como sintoma político, a arte deve ser uma prática de oposição aos fundamentos econômicos, políticos e morais da sociedade burguesa.
 A arte só pode restabelecer sua veracidade, sua importância, seu sentido pleno, se ela atuar por uma outra realidade: a criação artística não aceita o rotineiro, não incrementa uma ordem social na qual a opressão impede a beleza em seu caráter iminentemente libertário. Portanto, se os artistas não reconhecerem o destino político da arte do nosso tempo, estarão fadados a se autoflagelarem ou simplesmente se autodestruírem nos limites do próprio ego. Cabe salientar, mais uma vez, que a tomada de consciência sobre o problema político não faz da arte uma serva da esfera política: a arte atua politicamente enquanto arte.  Num momento em que as questões de segurança tornam-se mais importantes que  comida e  saúde,  os artistas devem revelar/denunciar a insegurança oculta dos discursos que fundamentam um sistema opressor.

domingo, 3 de julho de 2016

Boletim Lanterna. Ano 06. Ed 25/26

Se Karl Marx não foi propriamente um esteta, ninguém pode, por mais reacionário que seja, negar que o materialismo dialético operou uma profunda transformação no pensamento estético contemporâneo. Tal transformação não se deve tanto ao profundo conhecimento que Marx possuía em relação à literatura e às artes(aliás, tanto Marx quanto Engels possuíam folego de críticos literários), mas à ruptura com as estéticas idealistas. É claro que o marxismo não é o único termômetro filosófico progressista para analisarmos os problemas artísticos. Entretanto, é o marxismo o caminho mais eficaz para estabelecermos o entendimento quanto ao significado das obras e dos movimentos artísticos ao longo da história.
 O método marxista não leva ao empobrecimento da análise artística: ele a situa concretamente, concebendo a criação artística como fruto de uma necessidade particular. A expressão, a afirmação humana não nascem de um pincel transcendental. É a partir das relações dialéticas entre sujeito e objeto, que a riqueza humana é revelada. Portanto não é o Belo desencarnado, que nega a realidade material/histórica da arte. Não são discursos que vagam pelo ar, desconectados da realidade econômica e política. A arte vem do homem e para o homem:  a arte explicita a força criativa. Quer dizer, a arte não vem de um reino encantado, de uma inspiração divina ou embriagada: a experiência estética não pode ser explicada nem pelo espírito e nem pelas qualidades formais de uma árvore ou de uma paisagem. Dentro de uma relação humanizada com a natureza, o homem cria porque é obrigado a definir a si próprio no mundo. A embriaguez da arte possui raízes materiais.
 Marx não poderia deixar de observar o quanto o sistema capitalista é hostil à arte e à poesia. Não é pra menos: no modo de produção capitalista, impera o trabalho alienado. Neste sentido, a criação artística é um ato politicamente perigoso, que fere o controle sobre a percepção da população. Não é tanto o conteúdo ideológico das obras de arte, mas o que a criação artística pode despertar em seres mutilados pela mesquinha necessidade do dinheiro. Sem dúvida que a ideologia é um dado central na análise marxista; mas a ideologia revolucionária não esgota ou resume o que a arte tem de revolucionário em si mesma. Se a arte pela arte é , sem dúvida, uma doutrina burguesa, a arte que se quer revolucionária não envolve apenas um comentário político: é isso, pode ser isso e muito mais.
 A partir da sua relativa autonomia, a arte é fundamental para a classe operária porque ela apresenta um ponto de vista específico sobre o humano. Se a filosofia e as ciências humanas explicam a realidade, os seres humanos não se expressam, não criam livremente a partir delas as imagens que traduzem suas experiências sensíveis. A arte é uma aliada independente da luta política; e quem quiser saber aonde pisamos não deve se afundar no idealismo, mas numa leitura materialista, histórica e dialética que só o marxismo oferece.