segunda-feira, 17 de outubro de 2011

ARTE REVOLUCIONÁRIA CONTRA A BARBÁRIE:


“A cultura é a regra, a arte a
exceção “. Esta frase do cineasta francês Jean Luc Godard nos remete a idéia de
que enquanto a cultura expressa a norma, a castração e a inserção do individuo
em códigos de linguagem que por sua vez expressam as instituições dominantes, a
arte seria sempre transgressão, extravasamento,protesto,transbordamento,
revolta. Isto envolveria a História da arte como um todo? Certamente não
podemos deixar de encontrar também na arte não apenas o desejo de emancipação
frente a uma determinada ordem social, mas em
idêntica proporção uma força ideológica capaz de conservar a cultura que
por sua vez legitima a organização econômica e política de uma dada sociedade.
Nos dias atuais a situação da arte além de não abranger apenas categorias
tradicionais de linguagem nos respectivos gêneros artísticos(literatura,
pintura, arquitetura, música, etc) remete a um amplo panorama composto desde
uma atitude estética que almeja o estranhamento (e ao mesmo tempo não revela
uma consistência maior quanto ao sentido da sua ação transformadora no ser),
passando por coletivos vanguardistas ao redor do mundo(em sua maioria
marginalizados), pela produção artística das periferias mundiais( vide por
exemplo a cultura Hip Hop) e chegando a ameaça totalitária de reificação do
homem através da indústria cultural(do cinema de Hollywood até outras formas de
massificação no audiovisual, na música e nas artes como um todo).
Arte e comércio tem submetido a experiência
estética segundo o critério do lucro. De um modo geral o cenário da arte
contemporânea bem como das letras tem o
seu ritmo produtivo condicionado pelas leis de mercado,estranhas as
necessidades subjetivas que culminam na criação artística. Portanto o
imperativo empreendedor funciona enquanto mecanismo repressivo e alienante, que
nega a promessa de liberdade contida na própria ação artística(no nosso tempo
esta última é indissociável da revolta e da recusa). A este cenário deplorável
a crítica e a academia enquanto forças aliadas ao capital, tem como critério a
abordagem de manifestações interessadas na perpetuação da sociedade capitalista.
Que o crítico e o acadêmico sejam em sua esmagadora maioria lacaios da ordem
burguesa, isto não apresenta nenhuma novidade. No entanto(e o mais grave) é que
o próprio artista contemporâneo de um modo geral, negando o seu papel
transgressor acaba também por abandonar a idéia de programas, filiações
estéticas e sobretudo movimentos artísticos, culminando deste modo na figura do
agente recreativo que arranca no máximo sorrisos da classe média em seus
setores “intelectualizados”. Obviamente que muitos artistas contemporâneos
conscientemente ou não, apresentam intervenções e criações que ainda não
abandonaram a contestação do nosso modo de vida. Porém muito mais do que
suscitar uma reflexão momentânea através de uma instalação por exemplo , é o
elo com a arte moderna e as suas qualidades utópicas que ameaça ser quebrado
pelo atual cenário. Conquistas estéticas existem, mas desvinculadas da energia rebelde, hoje
desqualificada enquanto postura anacrônica do século passado. Trata-se portanto
da banalização das conquistas revolucionárias da arte moderna que agora
torna-se refém do mercado e da intervenção banal, sem maiores propósitos.
Paralelamente, no pólo das manifestações de massa que funcionam enquanto
expressão do mundo tal como ele está organizado, encontramos um forte
sustentáculo para o espetáculo mercantil que sufoca outras possibilidades de se
comportar, agir e sentir.

Estabelecer uma reflexão sobre a validade e em especial sobre a
significação da arte no nosso tempo, envolve não o abandono mas a evocação dos
principais impasses estéticos da modernidade. As heranças dos movimentos de
vanguarda (que se desdobraram em correntes construtivistas e oníricas), do
espírito romântico de teor anticapitalista, da arte engajada e também da
contracultura, precisam ser assumidas não enquanto processo de criação
superficial, mas sim em suas bases filosóficas. Frente ao relativismo
pós-moderno novas formas de oposição artística devem responder com o cultivo
das tradições revolucionárias da arte. Esta seria uma precaução ao histórico
processo de absorção e da conseqüente neutralização de obras, escolas e
movimentos que após escandalizarem a sociedade burguesa em seus respectivos
momentos, tornam-se mais tarde uma simples curiosidade museológica(que aliás
move muito dinheiro).

A sociedade capitalista em seu intrínseco processo de mercantilização da
vida, interfere na natureza desinteressada da experiência estética e converte o
objeto artístico em uma mercadoria como qualquer outra. Além deste
constrangimento que o artista romântico presenciou já no século XIX,
encontramos não somente o condicionamento da arte e da literatura segundo as
leis de regulamentação e distribuição industrial, mas o surgimento de novas
significações sociais para a arte, agora, “retirada” do seu ambiente sagrado e
desprendida de resquícios clássicos e medievais. Walter Benjamin percebeu em
seu clássico ensaio A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica(1936) ,
que o objeto artístico perdeu a sua aura, a sua unicidade, o seu vinculo
metafísico, para acompanhar o processo de reprodução ilimitada possibilitada pelas novas
condições técnicas. A arte deixa de ser a um só tempo representação da natureza
e privilégio de classe, e passa a estar destinada a multiplicidade revelada
pela fotografia e intensificada pelo cinema(hoje tal nível de reprodução das
imagens adquire uma dimensão vertiginosa com a era da cultura digital). Levando
em conta agora a inserção das artes no contexto industrial, nos aproximamos da
situação histórica que define a arte do nosso tempo: Do ponto de vista da
conservação social podemos concluir que nos nossos dias a expansão da imagem(
caberia acrescentar também de sons e palavras) remete de maneira hegemônica á
experiência estética que promove a massificação e portanto representa o povo
sem alterar as suas relações de produção; Acrescente-se ainda a manipulação dos
desejos e a banalização da arte enquanto entretenimento irresponsável.
Entretanto, levando em conta o impacto das novas realidades técnicas na arte,
vislumbramos como já apontou Benjamin, novas possibilidades para “a politização da arte”, que está á serviço da
emancipação social. Chamando a atenção em especial para os meios de produção
culturais da atualidade presenciamos o surgimento de novos suportes que por sua
vez levam a descentralização e a autonomia da criação artística.Mais do que
nunca podemos falar em possibilidades concretas para se combater a indústria
cultural segundo a estratégia da guerrilha cultural. Exemplos não faltam: Vejam
as potentes e precisas câmeras redefinindo o audiovisual, ouçam a produção e a
circulação online de canções, leiam blogs e sites que resultam em publicações
eletrônicas, que por sua vez alteram os espaços de criação literária, visual e
de crítica. Diante destas novas
condições técnicas cabe ao artista compreender o legado da modernidade para se
criar novas iniciativas, novos desdobramentos.

Se a dessacralização da obra de
arte no universo laico das relações capitalistas é um fato, a encruzilhada da
História reservou um destino duplo para a criação artística. De um lado a arte
tende a anular as suas qualidades de recusa e de rebelião na massificação, do outro
reserva para si a tentativa guerrilheira de afirmar-se enquanto manifestação
sensível que se opõem a sociedade burguesa. Trata-se de uma cilada histórica em
que a arte divide-se entre a sua própria
negação na indústria cultural(que a simplifica e a banaliza enquanto componente
de adestramento psicológico para conservar a ordem) e a luta pela sua
identidade libertária preservada por programas que defendem formas de arte
revolucionária.

Evidentemente que na era contemporânea nem tudo aquilo que está vinculado
aos meios de comunicação de massa deve ser encarado automaticamente enquanto
alienação, basta lembrarmo-nos por exemplo de que o universo da música pop já
revelou exemplares manifestações de crítica e de revolta: Do Rock ao Rap. Mas
levando em conta que isto são exemplos raros e que pendem cada vez mais para a
sua neutralização através do consumo, como definir esta forma de resistência a
que podemos designar de arte revolucionária? Tal conceituação abrange um quadro
plural, ambíguo, muitas vezes aberto a mal entendidos e até mesmo a negação da
arte enquanto expressão revolucionária. Seria precipitado supor que arte
revolucionária é tão somente aquela que fala de idéias políticas. Sem dúvida
que a arte pode tematizar a vida política como nos demonstra uma série de
exemplos históricos. Entretanto a arte em si mesma, pelo seu material sensível
irredutível a conceitos( que não podem se impor á priori na criação sem violar
a própria arte) designa também a insurreição do universo interior do individuo
contra uma realidade intolerável. É na liberação do inconsciente que o desejo a
ser compartilhado entre os homens na experiência estética, pode fazer da arte
livre e solta uma força naturalmente subversiva, que pela sua violência pode
ser mais eficiente do que uma arte explicativa.

De qualquer modo, exteriorizando o desejo ou abordando objetivamente a
realidade, para a arte ser verdadeiramente revolucionária é preciso que nenhuma
forma de controle e nenhum imperativo externo a descaracterize. Portanto, remetendo-se
as idéias de André Breton e Leon Trotski no clássico Manifesto por uma arte revolucionária independente(1938), a arte
que se opõem a sociedade estabelecida deve ser independente. Tal condição é
imprescindível para que a arte não seja alvo da histórica cooptação envolvendo
artistas e movimentos para servirem ao Estado totalitário(fascista, stalinista
e teocrático) e a Indústria cultural(hoje mais do que nunca inseparável das
democracias burguesas).

As relações entre Arte e Revolução devem ser precisadas não enquanto
reflexo ou submissão da primeira a segunda, mas enquanto um amplo processo que
atende ao desejo de transformação social. Neste processo, independentemente do
modelo de Revolução política em questão, a oposição artística revela um papel
específico, autônomo, de fazer da imaginação um levante contra a realidade e
exigir ao homem que ele viva de acordo com o seu próprio desejo, na sua
totalidade(a arte tem por tarefa restituir o homem consigo mesmo).

Ausente dos principais debates estéticos atuais(se é que existe de fato
algum debate franco sendo realizado) a expressão arte revolucionária não se
confunde aqui com propaganda política ou com o Realismo socialista, ainda
presentes de forma pífia na Coréia do Norte. Por arte revolucionária entende-se
uma experiência radical e libertária que pela forma, pelo conteúdo e pelas suas
condições técnicas independentes, compõe um espírito de não alinhamento, de não
composição com os valores do capitalismo. É uma experiência transformadora
irredutível a qualquer forma de controle externo. Muito mais do que expressão
de um imperativo ideológico fundamentado em uma linha política, a arte é
subversão do cotidiano alienado, é o enfrentamento que pelas suas próprias leis
de criação propõe uma nova percepção, uma atitude de contramão frente a
multidão imbecilizada, uma retomada da individualidade autentica, um combate a
barbárie que nos cerca.


Afonso Machado

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