sábado, 22 de outubro de 2011

Manifesto da Fiari



POR UMA ARTE REVOLUCIONÁRIA INDEPENDENTE

André Breton e Leon Trotsky

1) Pode-se pretender sem exagero que nunca a civilização humana esteve ameaçada por tantos
perigos quanto hoje. Os vândalos, com o auxílio de seus meios bárbaros, isto é,
deveras precários, destruíram a civilização antiga num canto limitado da
Europa. Atualmente, é toda a civilização mundial, na unidade de seu destino
histórico, que vacila sob a ameaça das forças reacionárias armadas com toda a
técnica moderna. Não temos somente em vista a guerra que se aproxima. Mesmo
agora, em tempo de paz, a situação da ciência e da arte se tornou absolutamente
intolerável.
2) Naquilo que ela conserva de individualidade em sua gênese, naquilo que aciona
qualidades subjetivas para extrair um certo fato que leva a um enriquecimento
objetivo, uma descoberta filosófica, sociológica, científica ou artística
aparece como o fruto de um acaso precioso, quer dizer, como uma
manifestação mais ou menos espontânea da necessidade. Não se poderia
desprezar uma tal contribuição, tanto do ponto de vista do conhecimento geral
(que tende a que a interpretação do mundo continue), quanto do ponto de vista
revolucionário (que, para chegar à transformação do mundo, exige que tenhamos
uma idéia exata das leis que regem seu movimento). Mais particularmente, não
seria possível desinteressar-se das condições mentais nas quais essa
contribuição continua a produzir-se e, para isso, zelar para que seja garantido
o respeito às leis específicas a que está sujeita a criação intelectual.
3) Ora, o mundo atual nos obriga a constatar a violação cada vez mais geral dessas leis,
violação à qual corresponde necessariamente um aviltamento cada vez mais
patente, não somente da obra de arte, mas também da personalidade “artística”.
O fascismo hitlerista, depois de ter eliminado da Alemanha todos os artistas
que expressaram em alguma medida o amor pela liberdade, fosse ela apenas
formal, obrigou aqueles que ainda podiam consentir em manejar uma pena ou um
pincel a se tornarem os lacaios do regime e a celebrá-lo de encomenda, nos
limites exteriores do pior convencionalismo. Exceto quanto à propaganda, a
mesma coisa aconteceu na URSS durante o período de furiosa reação que agora
atingiu seu apogeu.
4) É evidente que não nos solidarizamos por um instante sequer, seja qual for seu sucesso
atual, com a palavra de ordem: “Nem fascismo nem comunismo”, que corresponde à
natureza do filisteu conservador e atemorizado, que se aferra aos vestígios do
passado “democrático”. A arte verdadeira, a que não se contenta com variações
sobre modelos prontos, mas se esforça por dar uma expressão às necessidades
interiores do homem e da humanidade de hoje, tem que ser revolucionária, tem
que aspirar a uma reconstrução completa e radical da sociedade, mesmo que fosse
apenas para libertar a. criação intelectual das cadeias que a bloqueiam e
permitir a toda a humanidade elevar-se a alturas que só os gênios isolados atingiram
no passado. Ao mesmo tempo, reconhecemos que só a revolução social pode abrir a
via para uma nova cultura. Se, no entanto, rejeitamos qualquer solidariedade
com a casta atualmente dirigente na URSS, é precisamente porque no nosso
entender ela não representa o comunismo, mas é o seu inimigo mais pérfido e
mais perigoso.
5) Sob a influência do regime totalitário da URSS e por intermédio dos organismos ditos
“culturais” que ela controla nos outros países, baixou no mundo todo um
profundo crepúsculo hostil à emergência de qualquer espécie de valor
espiritual. Crepúsculo de abjeção e de sangue no qual, disfarçados de
intelectuais e de artistas, chafurdam homens que fizeram do servilismo um
trampolim, da apostasia um jogo perverso, do falso testemunho venal um hábito e
da apologia do crime um prazer. A arte oficial da época estalinista reflete com
uma crueldade sem exemplo na história os esforços irrisórios desses homens para
enganar e mascarar seu verdadeiro papel mercenário.
6) A surda reprovação suscitada no mundo artístico por essa negação desavergonhada dos
princípios aos quais a arte sempre obedeceu, e que até Estados instituídos
sobre a escravidão não tiveram a audácia de contestar tão totalmente, deve dar
lugar a uma condenação implacável. A oposição artística é hoje uma das
forças que podem com eficácia contribuir para o descrédito e ruína dos regimes
que destroem, ao mesmo tempo, o direito da classe explorada de aspirar a um
mundo melhor e todo sentimento da grandeza e mesmo da dignidade humana.
7) A revolução comunista não teme a arte. Ela sabe que ao cabo das pesquisas que se podem
fazer sobre a formação da vocação artística na sociedade capitalista que
desmorona, a determinação dessa vocação não pode ocorrer senão como o resultado
de uma colisão entre o homem e um certo número de formas sociais que lhe são
adversas. Essa única conjuntura, a não ser pelo grau de consciência que resta
adquirir, converte o artista em seu aliado potencial. O mecanismo de sublimação,
que intervém em tal caso, e que a psicanálise pôs em evidência, tem por objeto
restabelecer o equilíbrio rompido entre o “ego” coerente e os elementos
recalcados. Esse restabelecimento se opera em proveito do ”ideal do ego” que
ergue contra a realidade presente, insuportável, os poderes do mundo interior,
do “id”, comuns a todos os homens e constantemente em via de
desenvolvimento no futuro. A necessidade de emancipação do espírito só tem que
seguir seu curso natural para ser levada a fundir-se e a revigorar-se nessa
necessidade primordial: a necessidade de emancipação do homem.
8) Segue-se que a arte não pode consentir sem degradação em curvar-se a qualquer diretiva
estrangeira e a vir docilmente preencher as funções que alguns julgam poder
atribuir-lhe, para fins pragmáticos, extremamente estreitos. Melhor será
confiar no dom de prefiguração que é o apanágio de todo artista autêntico, que
implica um começo de resolução (virtual) das contradições mais graves de sua
época e orienta o pensamento de seus contemporâneos para a urgência do estabelecimento
de uma nova ordem.
9) A idéia que o jovem Marx tinha do papel do escritor exige, em nossos dias, uma retomada
vigorosa. É claro que essa idéia deve abranger também, no plano artístico e
científico, as diversas categorias de produtores e pesquisadores. "O
escritor, diz ele, deve naturalmente ganhar dinheiro para poder viver e
escrever, mas não deve em nenhum caso viver e escrever para ganhar dinheiro...
O escritor não considera de forma alguma seus trabalhos como um meio.
Eles são objetivos em si, são tão pouco um meio para si mesmo e para os
outros que sacrifica, se necessário, sua própria existência à existência de
seus trabalhos... A primeira condição da liberdade de imprensa consiste em
não ser um ofício. Mais que nunca é oportuno agora brandir essa declaração
contra aqueles que pretendem sujeitar a atividade intelectual a fins exteriores
a si mesma e, desprezando todas as determinações históricas que lhe são
próprias, dirigir, em função de pretensas razões de Estado, os temas da arte. A
livre escolha desses temas e a não-restrição absoluta no que se refere ao campo
de sua exploração constituem para o artista um bem que ele tem o direito de
reivindicar como inalienável. Em matéria de criação artística, importa
essencialmente que a imaginação escape a qualquer coação, não se deixe sob
nenhum pretexto impor qualquer figurino. Àqueles que nos pressionarem, hoje ou
amanhã, para consentir que a arte seja submetida a uma disciplina que
consideramos radicalmente incompatível com seus meios, opomos uma recusa inapelável
e nossa vontade deliberada de nos apegarmos à fórmula: toda licença em arte.
10)Reconhecemos, é claro, ao Estado revolucionário o direito de defender-se contra
a reação burguesa agressiva, mesmo quando se cobre com a bandeira da ciência ou
da arte. Mas entre essas medidas impostas e temporárias de autodefesa
revolucionária e a pretensão de exercer um comando sobre a criação intelectual
da sociedade, há um abismo. Se, para o desenvolvimento das forças produtivas
materiais, cabe à revolução erigir um regime socialista de plano
centralizado, para a criação intelectual ela deve, já desde o começo,
estabelecer e assegurar um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma
autoridade, nenhuma coação, nem o menor traço de comando! As diversas associações
de cientistas e os grupos coletivos de artistas que trabalharão para resolver
tarefas nunca antes tão grandiosas unicamente podem surgir e desenvolver um
trabalho fecundo na base de uma livre amizade criadora, sem a menor coação
externa.
11) Do que ficou dito decorre claramente que ao defender a liberdade de criação, não pretendemos
absolutamente justificar o indiferentismo político e longe está de nosso
pensamento querer ressuscitar uma arte dita “pura” que de ordinário serve aos
objetivos mais do que impuros da reação. Não, nós temos um conceito muito
elevado da função da arte para negar sua influência sobre o destino da
sociedade. Consideramos que a tarefa suprema da arte em nossa época é
participar consciente e ativamente da preparação da revolução. No entanto, o
artista só pode servir à luta emancipadora quando está compenetrado
subjetivamente de seu conteúdo social e individual, quando faz passar por seus
nervos o sentido e o drama dessa luta e quando procura livremente dar uma
encarnação artística a seu mundo interior.
12) Na época atual, caracterizada pela agonia do capitalismo, tanto democrático quanto
fascista, o artista, sem ter sequer necessidade de dar a sua dissidência social
uma forma manifesta, vê-se ameaçado da privação do direito de viver e de
continuar sua obra pelo bloqueio de todos os seus meios de difusão. É natural
que se volte então para as organizações estalinistas que lhe oferecem a
possibilidade de escapar a seu isolamento. Mas sua renúncia a tudo que pode
constituir sua mensagem própria e as complacência degradantes que essas
organizações exigem dele em troca de certas possibilidades materiais lhe
proíbem manter-se nelas, por menos que a desmoralização seja impotente para
vencer seu caráter. É necessário, desde este instante, que ele
compreenda que seu lugar está além, não entre aqueles que traem a causa da
revolução e ao mesmo tempo, necessariamente, a causa do homem, mas entre
aqueles que dão provas de sua fidelidade inabalável aos princípios dessa
revolução, entre aqueles que, por isso, permanecem como os únicos qualificados
para ajudá-Ia a realizar-se e para assegurar por ela a livre expressão ulterior
de todas as manifestações do gênio humano.
13) O objetivo do presente apelo é encontrar um terreno para reunir todos os defensores
revolucionários da arte, para servir a revolução pelos métodos da arte e
defender a própria liberdade da arte contra os usurpadores da revolução.
Estamos profundamente convencidos de que o encontro nesse terreno é possível
para os representantes de tendências estéticas, filosóficas e políticas
razoavelmente divergentes. Os marxistas podem caminhar aqui de mãos dadas com
os anarquistas, com a condição que uns e outros rompam implacavelmente com o
espírito policial reacionário, quer seja representado por Josef Stálin ou por
seu vassalo Garcia Oliver.
14) Milhares e milhares de pensadores e de artistas isolados, cuja voz é coberta pelo
tumulto odioso dos falsificadores arregimentados, estão atualmente dispersos no
mundo. Numerosas pequenas revistas locais tentam agrupar a sua volta forças
jovens, que procuram vias novas e não subvenções. Toda tendência progressiva na
arte é difamada pelo fascismo como uma degenerescência. Toda criação livre é
declarada fascista pelos estalinistas. A arte revolucionária independente deve
unir-se para a luta contra as perseguições reacionárias e proclamar bem alto
seu direito à existência. Uma tal união é o objetivo da Federação Internacional
da Arte Revolucionária Independente (FIARI) que julgamos necessário criar.
15) Não temos absolutamente a intenção de impor cada uma das idéias contidas neste apelo, que
nós mesmos consideramos apenas um primeiro passo na nova via. A todos os
representantes da arte, a todos seus amigos e defensores que não podem deixar
de compreender a necessidade do presente apelo, pedimos que ergam a voz
imediatamente. Endereçamos o mesmo apelo a todas as publicações independentes
de esquerda que estão prontas a tomar parte na criação da Federação
Internacional e no exame de suas tarefas e métodos de ação.
16) Quando um primeiro contato internacional tiver sido estabelecido pela imprensa e pela
correspondência, procederemos à organização de modestos congressos locais e
nacionais. Na etapa seguinte deverá reunir-se um congresso mundial que
consagrará oficialmente a fundação da Federação Internacional.
O que queremos:
a independência da arte - para a revolução
a revolução - para a liberação definitiva da arte.


Cidade do México, 25 de julho de 1938

Nenhum comentário:

Postar um comentário