Apresentamos O Avesso do Cartão Postal, de Geraldo Vermelhão.
" E um sujo raio de sol tocou com patas grudentas o centro da cidade. De qual cidade? Na verdade pode ser a minha, a sua ou a cidade grande de qualquer outro brasileiro. Algum leitor poderia contestar esta afirmação, visto que cada cidade possui sua história, suas peculiaridades econômicas e culturais. Devo discordar parcialmente: apesar destas condições históricas serem de grande importância, a verdade é que a iluminação precária do sol que não toma banho, coloca todas as cidades brasileiras da atualidade sob uma mesma imagem miserável. Permitam agora detalhar esta questão.
Uma blusa de moletom, verde claro e com estampas vermelhas gastas, aparece abandonada no meio de uma grande avenida. Dá pra sentir o tremor do dono desta peça de roupa abandonada: viciado e de olhos que circulam como moscas, um mendigo consegue deixar seu sofrimento físico, seu suor esfumaçado, na blusa abandonada. Na praça ao lado, crianças famintas saltam loucamente num chafariz sem água. Poucos metros dali, é a última catarrada de um senhor aposentado, que sentado no banco danificado, tenta inutilmente se lembrar quantas horas dos seus 50 anos de trabalho foram roubadas pelos serviços prestados na fábrica, no supermercado, na feira, na construção civil e em tantos outros lugares.
Do alto, o centro da cidade assemelha-se a uma paisagem de guerra. Os edifícios gastos, as ruas e os peitos dos transeuntes esburacados. Pombas que voam em torno da Igreja são lentamente devoradas por piolhos, enquanto ex-garrafas de refrigerante contendo cachaça, são passadas ritualisticamente de mão em mão. Um sem teto alucinado improvisa um discurso embriagado. Em cada esquina promoções e o medo do inferno. Em volta do centro da cidade, bairros de classe média com todas as promessas do status e do sucesso individual. Nos bairros populares, as mesmas promessas contrastam com a realidade concreta. Um desempregado não é mais dono dos seus passos: são as contas do mês que empurram seus pés para frente, em direção a nenhum lugar.
Isso é tudo? Não cabe mais nada no retrato? Claro, existem feudos eletrônicos, aonde a burguesia constrói sua própria galáxia cultural, distante da blusa mal cheirosa de um mendigo ".
Geraldo Vermelhão
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