domingo, 23 de abril de 2017

Boletim Lanterna. Ano 07. Edição 62

Apresentamos A Greve Criadora, de Lenito

" Nenhum motor de ônibus roncou naquela manhã. O silêncio era a invisível melodia de combate nas garagens e nas estações de trem. A sirene das 18 h não gritaria: ela beijaria os lábios do relógio enquanto apitos, sinaleiros, placas e faróis acabariam por fazer amor num céu colorido. Aquela manhã seria de luta e beleza, ou melhor dizendo,seria aos olhos da história a beleza da luta.
  Num porto de Santos, uma ave pousou sobre um navio imóvel, fechado como um túmulo. Pessoas amontoavam-se nas estações de Metrô das cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Nenhum trem. Novos itinerários mentais. Bocas tagarelavam de norte a sul, de leste a oeste; era uma somatória de sotaques, uma moderna torre de Babel proletária que falava em um único assunto: greve geral. 
  Por volta do meio dia, um grupo de poetas exaustos entregava seus poemas aos passantes. Os poemas foram impressos em folhetos. Cada poeta entregava cada exemplar com entusiasmo e , olhando fixamente nos olhos dos transeuntes, diziam numa voz urgente: " É importante camarada, leia!".   Uma velha exclamou " Este papel tem cheiro de pólvora ". Alguns passos a frente, uma estudante respondia " Não, vovó. Isto tem cheiro de flor ". Os poetas percorreram o centro da cidade incansavelmente.
  Os poemas circulavam como loucas borboletas que desejavam pousar nos olhos de todos os trabalhadores da cidade: nas praças, nas fábricas, nas universidades... Naquele dia de greve, todos os espaços públicos deveriam conter versos que traduziam em imagens raivosas, a carne trêmula usada como velho burro de carga do capital. Um sindicalista perguntou a um dos poetas:

- Rapaz, isto é um panfleto ou um poema?

Limpando o suor da testa, o poeta responde:

- O poema é um panfleto e o panfleto é um poema. 

Restavam alguns poucos exemplares nas mãos dos poetas. Um velho professor perguntou ao grupo:

- Certo, vocês são poetas de esquerda, escritores politizados. Mas será que num dia de greve como esse, sobra espaço para poesia?

Um dos poetas sorriu. Abraçou o velho professor e disse com um sorriso embriagado:

- Meu caro, o trabalho da poesia não é alienado. É um lance criador. Quando os trabalhadores entram em greve a poesia ocupa a cidade. Para nós, a greve é a obra de arte necessária. 

No final da noite, um burguês rói-a as unhas: ele olhava pela janela as massas em luta. Um mal estar intestinal fez com que ele corresse para seu lindo banheiro. Foi um único gesto sem poesia durante todo aquele dia " .


                                                                                 Lenito
   

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