domingo, 29 de outubro de 2017

Boletim Lanterna. Ano 07. Edição 84

Apresentamos Pintura que não é enfeite, de Marta Dinamite.

" Mário acordou com uma vontade danada de sair fazendo arte por aí. Ele, que já tinha realizando vários trampos como pintor de parede, arriscava-se em pintar seus desejos mais profundos, dando ouvidos aquela voz que chega no cangote e sugere: " Seja livre! ". Mas Mário raramente dava bola para esta voz. Ele, um trabalhador braçal, tantas vezes humilhado por patrões e gente endinheirada, achava-se mais parecido com um bicho da seda do que com um pintor.  No entanto, naquela manhã de domingo, Mário decidiu criar.
Mário percorreu ruas, avenidas, bosques, pontos de ônibus e estações de metrô. O que pintar? Ele tinha tintas, pincel, spray e um desejo louco de colorir. Colorir simplesmente? Não, talvez não fosse apenas colorir. Ele queria usar as cores mas não para enfeitar. O que ele tinha em mente era fazer com que o vermelho, o amarelo, o azul e o verde acordassem pra valer a cidade. Não, ele não estava afim de fazer da cidade um simples embrulho pra presente. Qual seria o objetivo de enfeitar tanto sofrimento esparramado?
A cidade de Mário estava forrada de tragédias: gente maltrapilha, crianças com fome, nóias e mais nóias a cada quarteirão. Mário ainda não sabia bem o que fazer. O jovem artista Mário passou um tempão da sua vida produzindo mercadorias em fábricas. E era cada mercadoria bonita! Mas ele não se reconhecia naquilo, era como se o seu rosto sumisse no reflexo do espelho. Um vampiro, pois é, Mário sentiu-se como um vampiro que mal tinha grana para tomar sangue, cerveja e até guaraná. Depois, como já dito, Mário foi pintor de parede. Mas agora era ele quem escolhia as cores e pensava as formas do que ele iria finalmente CRIAR. E lá foi ele, sem medo, com energia, como se fosse cumprir uma missão vital para a cidade: naquele domingo, Mário saiu para pintar. Não eram imagens bonitas. Ninguém iria paga-lo. Provavelmente ele seria mais uma vez ridicularizado pelos ricos. No fim daquele mesmo dia, porém, quando o sol cuspia sombras nas praças, um casal de operários parou e olhou para uma parede que continha desenhos de Mário. Era como se aquele casal encontrasse seus rostos cansados num espelho ".

                                                                                      Marta Dinamite  

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