segunda-feira, 8 de outubro de 2012

ESTÉTICA E ANARQUIA




É no flamejar das bandeiras negras que o impulso criativo da arte também encontra um  modelo de rebelião contra o filisteu mundo burguês. O desejo pela liberdade absoluta e a presença da anarquia tem sido em grande parte os motores sem leis da arte moderna e contemporânea. No entanto se precisarmos historicamente as relações entre a produção artística e o pensamento político do anarquismo, nos deparamos com encontros e desencontros, paixão e desconfiança, atração e rejeição. A seguir nos limitaremos a fazer algumas citações históricas, sem evidentemente esgotar um assunto tão vasto e complexo.
Nesta aparente união histórica que acaba por revelar a imperiosa necessidade de uma “Estética libertária” , arte e anarquia traçam caminhos tortuosos entre si. Se algumas das experiências socialistas do século passado flagraram verdadeiros equívocos do ponto de vista estético e cultural em geral, podemos concluir que o  potencial revolucionário da arte foi mal compreendido tanto por marxistas vulgares (imersos no Realismo socialista) quanto por libertários sem conhecimento de causa.  
Em França durante a Belle Époque  (1880-1914) a essência libertária do anarquismo encontra uma franca sintonia estética com a pintura pós-impressionista e com a poesia simbolista. Muito mais do que a menção ao tema da luta revolucionária no conteúdo de telas e poemas, a identificação com a postura libertária estava na própria dinâmica interna da forma. Compenetrado subjetivamente na elaboração das formas da pintura ou do poema(em suas especificidades de linguagem), o artista identificado com a ideologia anarquista assumia a recusa contra qualquer forma de autoridade rompendo com os padrões clássicos e o racionalismo identificados ao gosto burguês.
É difícil precisar a que corrente anarquista estes artistas se identificavam, já que em termos políticos podemos falar em “ anarquismos “. Porém, esta identificação artística seria questionada por muitos militantes anarquistas devido a existência de algumas preocupações culturais no seio do movimento operário. Tais militantes pensam a arte num sentido contrário ao das experimentações estéticas da modernidade: Presa-se a arte engajada, de conteúdo social. Consideramos o engajamento indispensável : O artista a partir de sua visão comprometida com os problemas do seu tempo, usa a sua arte para comunicar aos  trabalhadores a necessidade de transformar a realidade. Entretanto ( e como sempre procuramos frisar em nossos textos) o caráter experimental, inovador, de ruptura formal é igualmente vital para qualquer modelo de arte combativa. 
Hostis aos artistas de vanguarda, anarquistas europeus procuram dar continuidade a tradição de uma arte com forte senso pedagógico. O preconceito frente ao artista rebelde e boêmio deve-se a um período de isolamento destes diante da realidade política: Após as jornadas de 1848, muitos artistas e intelectuais ficaram aterrorizados com a repressão policial. A não ser por poucos pintores e poetas engajados na emblemática centelha épica da Comuna de Paris de 1871(cabe nesta ocasião mencionar o empenho do pintor Courbet), um abismo de incertezas separava artistas e luta proletária .
Se em termos estéticos os anarquistas do final do século XIX e de boa parte do século XX demonstram uma postura rudimentar e sectária, é preciso acentuar a louvável preocupação destes com a educação e portanto com a formação intelectual dos operários. Neste sentido cabe citar o ex-sapateiro francês Jean Grave, as atividades teatrais dos anarquistas no Brasil e a produção cultural do anarquismo espanhol. Na Espanha durante o início do século XX encontramos uma sistemática educação anarquista nas chamadas CASAS DEL PUEBLO. Com a eclosão da Guerra civil (1936-39) contra a barbárie franquista, os anarquistas espanhóis irão acentuar a produção artística e educacional criando por exemplo uma autêntica cinematografia anarquista.
Tendo em mente esta cinematografia anarquista espanhola cabe agora uma rápida reflexão sobre a importância de um cinema realizado por e para militantes.Nem precisamos dizer o quanto isto é significativo do ponto de vista da História da Arte Revolucionária: O cinema pela sua natureza técnica é a linguagem artística estratégica do nosso tempo. O cinema pode mobilizar em larga escala a sensibilidade e desenvolver a consciência política numa direção multiplicadora. Mais significativo ainda é quando os operários estão com a câmera em punho, criando a sua própria cinematografia que testemunha sua luta histórica por libertação. No caso espanhol durante o início do século, o anarquismo aparece enquanto orientação ideológica e ferramenta de agitação e propaganda para um cinema que visa a mobilização popular. Tratam-se de filmes que embora excessivamente didáticos exalam um épico cheiro de pólvora contra a elite dominante. Gostaríamos assim de chamar a atenção das centrais sindicais de hoje em dia para este feito histórico: A CNT estava comprometida com uma produção cinematográfica revolucionária. E hoje em dia? Em meio ao bombardeio midiático que os trabalhadores recebem diariamente, quais estratégias o sindicalismo apresenta para combater no plano audiovisual a dominação da burguesia? Os anarquistas espanhóis da década de trinta por exemplo ensinam. Entretanto isto não quer dizer que tal cinema anarquista apresente maiores conquistas estéticas, aliás nem podemos falar em uma “ Estética anarquista “ (se é que isto é concebível). O que falta aos filmes do período é exatamente uma linguagem libertária(embora o conteúdo o seja).
Com o apocalipse moderno da primeira guerra mundial(1914-18), o sentimento anárquico encontra a sua expressão máxima no movimento Dada. A antiarte dos dadas expressa em inúmeras manifestações de caráter provocador, irracional e iconoclasta deu ao movimento uma dimensão anárquica sem paralelos na História. Sem dúvida uma rebelião que se encaixa perfeitamente em um programa anarquista para ações (anti) artísticas.
O desagradável odor da rebelião Dada surge em Zurique na Suíça e chega até as narinas burguesas da Alemanha em Berlim. Nesta última o Dada desenvolve a sua feição politizada em um profundo questionamento do sistema. Porém,  o Dada alemão divide-se entre adeptos do anarquismo e do marxismo. Tal divisão é compreensível já que os Partidos de esquerda passam a ocupar na Europa um espaço cada vez maior, enquanto que o anarquismo vai perdendo a sua força política.
Em Paris, se o Dada seria já em 1921 absorvido pela cultura dominante, é de dentro do seu útero niilista que nasce um movimento com maior consistência e aprofundamento filosófico: O Surrealismo. Este, inconciliável com a ordem capitalista, passara o período de 1925-45 politicamente identificado com o marxismo. Porém, a defesa radical da autonomia na produção artística em relação a qualquer órgão centralizado de poder, fez com que André Breton e seus amigos fossem marginalizados no interior do movimento comunista durante a era stalinista. 
Após o turbilhão da segunda guerra mundial(1939-45) os surrealistas franceses aproximam-se abertamente dos libertários. Aliás é verificável na trajetória política do Surrealismo uma  tensão não resolvida entre a bandeira vermelha e a bandeira negra.  Já no MANIFESTO POR UMA ARTE REVOLUCIONÁRIA INDEPENDENTE  redigido no México em 1938 por Breton e Trotski(publicamos este documento aqui no LANTERNA), ambos não cessaram em apontar a necessidade de anarquistas e marxistas andarem de mãos dadas no plano da criação artística. Isto revela um ponto de vista de uma extrema atualidade(assim como uma série de outros pontos do manifesto) pelo fato de que a luta contra as formas de opressão social pressupõe a diversidade política e cultural.
Porém, durante a década de cinqüenta a aproximação dos surrealistas com a Federação anarquista francesa gerou desconforto. Ao escreverem no jornal da federação LE LIBERTERIE , autores surrealistas encontraram nos militantes anarquistas sérias reservas: No tocante a arte, estes últimos advogam por uma estética realista e pedagógica. Quer dizer, foram incapazes de compreender a Revolução subjetiva preconizada pelo Surrealismo e ironicamente a Federação aproxima sua posição estética com o stalinismo!
Da segunda metade do século XX para cá é crescente a identificação de artistas rebeldes com o anarquismo: Dos Letristas aos Enrangés do Maio de 68, do Punk rock dos anos setenta aos contestadores da atualidade. O que acabamos por observar sobretudo dos anos sessenta em diante é uma compreensão cada vez maior por parte dos artistas anarquistas da necessidade de estéticas anárquicas, livres, experimentais. Isto deve-se evidentemente a uma abertura considerável dentro do pensamento anarquista iniciada já na década de quarenta na Inglaterra. Tal abertura contempla uma atenção especial aos problemas da percepção, do comportamento, das formas cotidianas de resistência frente a uma sociedade cada vez mais baseada no controle e na opressão dos indivíduos. Neste contexto em que o anarquismo parece fundir-se a uma atmosfera de contracultura, importantes artistas e pensadores anarquistas desenvolveram pelo mundo manifestações que questionam a figura da autoridade e propõem uma arte que desafia os limites entre obra e vida. Pensemos por exemplo no artista francês Jean Dubuffet, nas idéias do crítico de arte inglês Herbert Read, no grupo teatral norte americano Living Theatre e no artista brasileiro Hélio Oiticica(um dos pais do tropicalismo), para apenas citar alguns nomes que pertencem a uma renovação estética dentro do pensamento anarquista moderno.
Este conjunto de experiências estéticas dentro da História do anarquismo certamente envolve um legado prático para os artistas de hoje. Julgamos que tal herança é vital para que tanto anarquistas quanto marxistas avancem nos debates estéticos(acreditamos que ambos possam trabalhar juntos). No entanto, aqueles que realmente se interessam pela postura libertária e pretendem vincula-la a sua própria produção artística, devem se encarregar que maus entendidos sejam historicamente superados.
                                                                                                                
                                             Afonso Machado / Orestes Toledo 

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