É no flamejar das bandeiras negras
que o impulso criativo da arte também encontra um modelo de rebelião contra o filisteu mundo
burguês. O desejo pela liberdade absoluta e a presença da anarquia tem sido em
grande parte os motores sem leis da arte moderna e contemporânea. No entanto se
precisarmos historicamente as relações entre a produção artística e o
pensamento político do anarquismo, nos deparamos com encontros e desencontros,
paixão e desconfiança, atração e rejeição. A seguir nos limitaremos a fazer
algumas citações históricas, sem evidentemente esgotar um assunto tão vasto e
complexo.
Nesta aparente união histórica
que acaba por revelar a imperiosa necessidade de uma “Estética libertária” ,
arte e anarquia traçam caminhos tortuosos entre si. Se algumas das experiências
socialistas do século passado flagraram verdadeiros equívocos do ponto de vista
estético e cultural em geral, podemos concluir que o potencial revolucionário da arte foi mal
compreendido tanto por marxistas vulgares (imersos no Realismo socialista)
quanto por libertários sem conhecimento de causa.
Em
França durante a Belle Époque (1880-1914) a essência libertária do
anarquismo encontra uma franca sintonia estética com a pintura
pós-impressionista e com a poesia simbolista. Muito mais do que a menção ao
tema da luta revolucionária no conteúdo de telas e poemas, a identificação com
a postura libertária estava na própria dinâmica interna da forma. Compenetrado
subjetivamente na elaboração das formas da pintura ou do poema(em suas
especificidades de linguagem), o artista identificado com a ideologia
anarquista assumia a recusa contra qualquer forma de autoridade rompendo com os
padrões clássicos e o racionalismo identificados ao gosto burguês.
É difícil precisar a que corrente anarquista estes artistas se
identificavam, já que em termos políticos podemos falar em “ anarquismos “.
Porém, esta identificação artística seria questionada por muitos militantes
anarquistas devido a existência de algumas preocupações culturais no seio do
movimento operário. Tais militantes pensam a arte num sentido contrário ao das
experimentações estéticas da modernidade: Presa-se a arte engajada, de conteúdo
social. Consideramos o engajamento indispensável : O artista a partir de sua
visão comprometida com os problemas do seu tempo, usa a sua arte para comunicar
aos trabalhadores a necessidade de
transformar a realidade. Entretanto ( e como sempre procuramos frisar em nossos
textos) o caráter experimental, inovador, de ruptura formal é igualmente vital
para qualquer modelo de arte combativa.
Hostis aos artistas de vanguarda, anarquistas europeus procuram dar
continuidade a tradição de uma arte com forte senso pedagógico. O preconceito
frente ao artista rebelde e boêmio deve-se a um período de isolamento destes
diante da realidade política: Após as jornadas de 1848, muitos artistas e
intelectuais ficaram aterrorizados com a repressão policial. A não ser por
poucos pintores e poetas engajados na emblemática centelha épica da Comuna de
Paris de 1871(cabe nesta ocasião mencionar o empenho do pintor Courbet), um
abismo de incertezas separava artistas e luta proletária .
Se em termos estéticos os anarquistas do final do século XIX e de boa
parte do século XX demonstram uma postura rudimentar e sectária, é preciso
acentuar a louvável preocupação destes com a educação e portanto com a formação
intelectual dos operários. Neste sentido cabe citar o ex-sapateiro francês Jean
Grave, as atividades teatrais dos anarquistas no Brasil e a produção cultural
do anarquismo espanhol. Na Espanha durante o início do século XX encontramos
uma sistemática educação anarquista nas chamadas CASAS DEL PUEBLO. Com a
eclosão da Guerra civil (1936-39) contra a barbárie franquista, os anarquistas
espanhóis irão acentuar a produção artística e educacional criando por exemplo
uma autêntica cinematografia anarquista.
Tendo em mente esta cinematografia anarquista espanhola cabe agora uma
rápida reflexão sobre a importância de um cinema realizado por e para militantes.Nem
precisamos dizer o quanto isto é significativo do ponto de vista da História da
Arte Revolucionária: O cinema pela sua natureza técnica é a linguagem artística
estratégica do nosso tempo. O cinema pode mobilizar em larga escala a
sensibilidade e desenvolver a consciência política numa direção multiplicadora.
Mais significativo ainda é quando os operários estão com a câmera em punho,
criando a sua própria cinematografia que testemunha sua luta histórica por
libertação. No caso espanhol durante o início do século, o anarquismo aparece
enquanto orientação ideológica e ferramenta de agitação e propaganda para um
cinema que visa a mobilização popular. Tratam-se de filmes que embora excessivamente
didáticos exalam um épico cheiro de pólvora contra a elite dominante.
Gostaríamos assim de chamar a atenção das centrais sindicais de hoje em dia
para este feito histórico: A CNT estava comprometida com uma produção
cinematográfica revolucionária. E hoje em dia? Em meio ao bombardeio midiático
que os trabalhadores recebem diariamente, quais estratégias o sindicalismo
apresenta para combater no plano audiovisual a dominação da burguesia? Os
anarquistas espanhóis da década de trinta por exemplo ensinam. Entretanto isto
não quer dizer que tal cinema anarquista apresente maiores conquistas
estéticas, aliás nem podemos falar em uma “ Estética anarquista “ (se é que isto
é concebível). O que falta aos filmes do período é exatamente uma linguagem
libertária(embora o conteúdo o seja).
Com o apocalipse moderno da primeira guerra mundial(1914-18), o
sentimento anárquico encontra a sua expressão máxima no movimento Dada. A
antiarte dos dadas expressa em inúmeras manifestações de caráter provocador,
irracional e iconoclasta deu ao movimento uma dimensão anárquica sem paralelos
na História. Sem dúvida uma rebelião que se encaixa perfeitamente em um
programa anarquista para ações (anti) artísticas.
O desagradável odor da rebelião
Dada surge em Zurique na Suíça e chega até as narinas burguesas da Alemanha em Berlim. Nesta última
o Dada desenvolve a sua feição politizada em um profundo questionamento do
sistema. Porém, o Dada alemão divide-se
entre adeptos do anarquismo e do marxismo. Tal divisão é compreensível já que
os Partidos de esquerda passam a ocupar na Europa um espaço cada vez maior,
enquanto que o anarquismo vai perdendo a sua força política.
Em Paris, se o Dada seria já em 1921 absorvido pela cultura dominante, é
de dentro do seu útero niilista que nasce um movimento com maior consistência e
aprofundamento filosófico: O Surrealismo. Este, inconciliável com a ordem
capitalista, passara o período de 1925-45 politicamente identificado com o
marxismo. Porém, a defesa radical da autonomia na produção artística em relação
a qualquer órgão centralizado de poder, fez com que André Breton e seus amigos
fossem marginalizados no interior do movimento comunista durante a era
stalinista.
Após o turbilhão da segunda guerra mundial(1939-45) os surrealistas
franceses aproximam-se abertamente dos libertários. Aliás é verificável na
trajetória política do Surrealismo uma
tensão não resolvida entre a bandeira vermelha e a bandeira negra. Já no MANIFESTO POR UMA ARTE REVOLUCIONÁRIA
INDEPENDENTE redigido no México em 1938
por Breton e Trotski(publicamos este documento aqui no LANTERNA), ambos não
cessaram em apontar a necessidade de anarquistas e marxistas andarem de mãos
dadas no plano da criação artística. Isto revela um ponto de vista de uma
extrema atualidade(assim como uma série de outros pontos do manifesto) pelo
fato de que a luta contra as formas de opressão social pressupõe a diversidade
política e cultural.
Porém, durante a década de cinqüenta a aproximação dos surrealistas com
a Federação anarquista francesa gerou desconforto. Ao escreverem no jornal da
federação LE LIBERTERIE , autores surrealistas encontraram nos militantes
anarquistas sérias reservas: No tocante a arte, estes últimos advogam por uma
estética realista e pedagógica. Quer dizer, foram incapazes de compreender a
Revolução subjetiva preconizada pelo Surrealismo e ironicamente a Federação
aproxima sua posição estética com o stalinismo!
Da segunda metade do século XX para cá é crescente a identificação de
artistas rebeldes com o anarquismo: Dos Letristas aos Enrangés do Maio de 68,
do Punk rock dos anos setenta aos contestadores da atualidade. O que acabamos
por observar sobretudo dos anos sessenta em diante é uma compreensão cada vez
maior por parte dos artistas anarquistas da necessidade de estéticas anárquicas,
livres, experimentais. Isto deve-se evidentemente a uma abertura considerável
dentro do pensamento anarquista iniciada já na década de quarenta na
Inglaterra. Tal abertura contempla uma atenção especial aos problemas da
percepção, do comportamento, das formas cotidianas de resistência frente a uma
sociedade cada vez mais baseada no controle e na opressão dos indivíduos. Neste
contexto em que o anarquismo parece fundir-se a uma atmosfera de contracultura,
importantes artistas e pensadores anarquistas desenvolveram pelo mundo
manifestações que questionam a figura da autoridade e propõem uma arte que
desafia os limites entre obra e vida. Pensemos por exemplo no artista francês
Jean Dubuffet, nas idéias do crítico de arte inglês Herbert Read, no grupo
teatral norte americano Living Theatre e no artista brasileiro Hélio Oiticica(um
dos pais do tropicalismo), para apenas citar alguns nomes que pertencem a uma
renovação estética dentro do pensamento anarquista moderno.
Este conjunto de experiências estéticas dentro
da História do anarquismo certamente envolve um legado prático para os artistas
de hoje. Julgamos que tal herança é vital para que tanto anarquistas quanto
marxistas avancem nos debates estéticos(acreditamos que ambos possam trabalhar
juntos). No entanto, aqueles que realmente se interessam pela postura
libertária e pretendem vincula-la a sua própria produção artística, devem se
encarregar que maus entendidos sejam historicamente superados.
Afonso Machado / Orestes Toledo
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