segunda-feira, 1 de outubro de 2012

TRECHO DA CONFERÊNCIA " O AUTOR COMO PRODUTOR " , PRONUNCIADA POR WALTER BENJAMIN EM 1934




Um autor que não ensina nada aos escritores não ensina nada a ninguém. Assim, é
decisivo que a produção tenha um carácter de modelo, capaz de, em primeiro lugar,
levar outros produtores à produção e, em segundo lugar, pôr à sua disposição um
aparelho melhorado. E esse aparelho é tanto melhor quanto mais consumidores levar à
produção, numa palavra, quanto melhor for capaz de transformar os leitores ou
espectadores em colaboradores. Já possuímos um modelo deste género, mas só lhe
posso fazer aqui uma breve referência: trata-se do teatro épico de Brecht.
Continuam a escrever-se tragédias e óperas que dispõem aparentemente de um aparelho
cénico consagrado pela experiência, quando, na realidade, estas obras não fazem mais
do que fornecer um aparelho cénico caduco. “A falta de esclarecimento acerca da sua
situação, que reina entre músicos, escritores e críticos”, diz Brecht, “tem consequências
tremendas, que não são suficientemente tidas em conta. Pensando possuir um aparelho
que na realidade os possui, defendem um aparelho que já deixaram de controlar, que já
deixou de ser, como ainda julgam, um meio para os produtores, para se tornar um meio
contra os produtores”. E uma das razões principais por que este teatro de maquinarias
complicadas, de enorme aparato de figurantes, de efeitos refinados, se tornou um meio
contra os produtores, foi o facto de os tentar aliciar para a luta de uma concorrência sem
sentido, na qual o cinema e a rádio o enredaram. Este teatro – quer se trate do teatro
“sério”, quer do teatro de entretenimento: ambos são complementares, ambos se
completam um ao outro – é o teatro de uma camada social saturada, para a qual tudo
aquilo em que põe a mão se torna excitante. A sua causa é uma causa perdida. Não se
passa o mesmo com um teatro que, em vez de entrar em concorrência com aqueles
recentes instrumentos de publicação, os tenta aplicar e aprender com eles; numa palavra,
um teatro que procura entrar num confronto produtivo com esses instrumentos. O teatro
épico empenhou-se neste confronto. Comparado com o grau de desenvolvimento actual
do cinema e da rádio, é este o teatro do nosso tempo.
Com vista a tornar esse confronto positivo, Brecht voltou-se para os elementos
primitivos do teatro. Contentou-se, de certo modo, com um estrado. Renunciou a acções
de grande complexidade. E assim conseguiu transformar a relação funcional entre o
palco e o público, o texto e a representação, o encenador e o actor. Mais do que
desenvolver acções, o teatro épico deve, segundo Brecht, apresentar situações. Chega a
essas situações, como iremos ver, fazendo interromper as acções. Lembro aqui as
canções, cuja função principal é interromper a acção. Deste modo – recorrendo ao
princípio da interrupção - , o teatro épico retoma, como se vê, um processo que nos
últimos anos se nos tornou familiar através do cinema e da rádio, da imprensa e da
fotografia. Refiro-me ao processo da montagem: o elemento introduzido na montagem
interrompe o contexto em que está inserido. Mas permitam-me chamar brevemente a
vossa atenção para o facto de este processo ter aqui uma justificação especial, se não
mesmo a sua verdadeira justificação.
A interrupção da acção devido à qual Brecht designou de épico o seu teatro, impede
constantemente uma ilusão do público. Uma tal ilusão é, evidentemente, inútil para um
teatro que pretende tratar os elementos do real no sentido de uma série de experiências.
Mas é no fim e não no princípio desta experiência que se encontram as situações.
Situações que, sob esta ou aquela forma, são sempre as nossas situações. Não se procura
aproximá-las do espectador, mas sim distanciá-las dele. Ele reconhece-as como as
verdadeiras situações, não com presunção, como no teatro do naturalismo, mas com
espanto. O teatro épico não reproduz, pois, situações, antes as descobre. A descoberta
das situações processa-se através da interrupção do fio da acção. No entanto, a
interrupção não tem uma função de excitação, mas sim organizadora. Faz parar a acção
em curso, e com isso obriga o ouvinte a tomar posição perante o acontecimento, o actor
a tomar posição perante o seu papel. Vou mostrar-vos, com um exemplo, como a
descoberta e a elaboração do elemento gestual por Brecht não é mais do que uma nova
transformação dos métodos da montagem, decisivos na rádio e no cinema, que ele
reconverte fazendo de um procedimento muitas vezes apenas utilizado, porque está na
moda, um acontecimento humano. Imagine-se uma cena de família: a mulher está em
vias de pegar numa estatueta de bronze para a atirar à filha; o pai, a abrir a janela para
chamar por socorro. Nesse momento entra um estranho. A acção foi interrompida, o que
aparece em vez dela é a situação com que depara o olhar do estranho: caras
transtornadas, a janela aberta, móveis destruídos. Mas há um olhar perante o qual as
cenas mais banais da vida de hoje se apresentam de uma forma não muito diferente. É o
olhar do dramaturgo no teatro épico.
À obra dramática total ele contrapõe o laboratório dramático. Retoma de uma maneira
nova o velho grande trunfo do teatro: fazer sobressair e pôr à prova o que se está a
passar diante dos nossos olhos. No centro das suas experiências está o ser humano, o
homem de hoje: portanto, um ser humano limitado, neutralizado num meio hostil. Mas,
como não dispomos de outro homem, temos interesse em conhecê-lo. É submetido a
provas, a juízos de valor. O que daqui resulta é o seguinte: os acontecimentos não são
transformáveis no seu clímax, através da virtude e da decisão, mas apenas no seu
desenrolar estritamente habitual, através da razão e da prática. Construir, a partir dos
mais ínfimos elementos dos modos de comportamento, o que na dramaturgia aristotélica
se designa por “acção” – é este o sentido do teatro épico. Os seus meios são, pois, mais
modestos do que os do teatro tradicional; e também os seus objectivos. Pretende, não
tanto encher o público com sentimentos, mesmo que sejam os da revolta, mas antes
distanciá-lo de uma maneira duradoura, através da reflexão, das situações em que vive.
Diga-se, apenas de passagem, que não há melhor ponto de partida para a reflexão do
que o riso. E que a vibração do diafragma costuma ser um melhor estimulante do
pensamento do que as vibrações da alma. O teatro épico só é exuberante nas ocasiões de
riso que oferece.

Walter Benjamin, 1934.

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