quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Pequeno prefácio a um manifesto


PEQUENO PREFÁCIO A UM MANIFESTO:
Reiniciando a crítica literária cotidiana, o intelectual paulista Antonio Cândido escreveu há dias no pórtico de suas tarefas: " Pretendo tratar a literatura cada vez mais literariamente, reivindicando a sua autonomia e a sua independência, acima das paixões nem sempre límpidas do momento ". Para os que estão envolvidos nos comicios destas jornadas, os escritores que se atiram ás candidaturas para a Câmara dos Deputados, a plataforma de Antonio Cândido talvez passe despercebida. Encontrei ali, porém, com verdadeiro interesse, um ponto de vista coincidente , e que eu pretendia no meio de outras tarefas, também urgentes, cuidar de expor numa destas crônicas, que pela sua intermitência e nenhuma especialização , servem de repouso e de anteparo no meio dos embates destes dias apressados e equívocos.
Trata-se na verdade de defender as obras literárias pelo que elas são e devem valer, aos olhos dos intelectuais que as cultivam. Porque, como observa Antonio Cândido, atravessamos uma situação de perigo para as letras, e essa perspectiva o leva a pensar "na obrigação que temos de prestigia-las".
Inicialmente, há que pensar no papel particular de cada um, perante as enxurradas que a muitos arrasta... Uma adesão a um Partido não deve implicar, necessariamente, numa subordinação militante de serviços, a tal ponto que o intelectual acabe como os outros, pintando paredes ou fazendo discursos nas praças públicas. Mas há os que são conscientemente carregadores de andor pelas vantagens materiais e divinas que tais esforços trazem consigo. Esses não são os piores nem os verdadeiramente malignos e contagiosos. Fazem lá o seu negócio... Há porém os que se embebem de uma necessidade de carregar também o andor, certos de que estão exercendo o que adequadamente lhes cabe na ordem das coisas, e como são desprendidos servem de modelos aos jovens. É ai que a fascinação do erro começa e vai arrastando para o inferno os meus poetas e os meus escritores de amanhã. Recorda Rosa Luxemburgo na rigorosa seletividade do papel dos intelectuais na severa determinação do trabalho imenso que é o da tomada de consciência do proletariado, o qual não tem tempo a perder com literaturas de qualquer colorido... Enquanto adquire os dados de sua ciência social não pode estar fazendo aquisições paralelas de que maneira alguma irão contribuir para a formação de uma cultura ou de uma arte proletária. Os aleijões proletários, proletarizados, os folhetins socializantes como diria Sérgio Milliet, que querem influir na massa, deixam de ser literatura para se constituírem em reportagens da miséria, como se o povo já não sofresse bastante miséria, capaz de lhe fornecer uma escada para a sua revolta...
Sabemos que não é assim e que estamos longe ainda do dia em que a consciência da própria inferioridade econômica, a escravização exploradora do capitalismo, coloque na mão de cada homem do povo uma flama de rebelião. Mas aprofundemos em exemplos concretos esta acusação: Por que os Partidos proletarizantes não se metem a proletarizar a Química, a Medicina, a Física? Não irá o proletariado na aurora distante de sua libertação, utilizar as conquistas da Quimica, da Física e da Medicina decorrentes do conjunto das ciências que vão avançando sem uma hesitação, indiferentes á economia burguesa de que vivem? Então por que só a Literatura e a Arte devem passar pelo processo de trituração proletarizante?
Agora lemos nos jornais poesias sobre o Partido de Prestes, em que vem tudo, desde a boba ilustração até o apelo a estas grosseiras insinuações da vanguarda stalinista e da burguesia progressista, e tudo isso metido em verso, como se fora algo mais do que subserviência vesga e precária. Recordamos o jovem mas gigantesco Rimbaud de 1871: " L´ art éternel aurait ses fonctions, comme le poétes sont citoyens. La Poésie ne rythmera plus L` action ; elle sera en avant ". E é ai que é preciso chegar. Não importa para a poesia a instalação de uma sede do Partido na Bahia ou na Coréia. O que importa é o voo da imaginação para além dos muros do horizonte, para me servir de uma imagem de Fernando Pessoa , onde se forja a ampla libertação do homem , de suas guerras, de suas guardas de fronteiras, das eleições que o Kremlim está preparando para a Bulgária, dos empréstimos que os EUA vão fazer, ou da construção da indústria pesada nos paises semicoloniais apartir deste ano.
Burguesa mesmo, ou não burguesa, carregada de resíduos de classe, ou libertada, como em certos casos de grandiosa prospecção humana, a literatura tem os seus inimigos e é até facil enumera-los. Eles são assim discrimináveis , numa ordem odiosa que não me cabe sistematizar, e que compreende o comercialismo , o sectarismo político, a igrejinha político-literária, o descaso pela forma baseado na importância do assunto ou o descaso do assunto baseado na importância da forma, a desonestidade crítica, a suficiência favorecida pelo sorriso complacente dos "amigos" do escritor, a preguiça intelectual, a miserável rodinha... E há os amigos da literatura, fatores a cultivar, a incutir no ânimo dos moços, como escreveu Antonio Cândido no artigo citado: " Precisamos convencer os jovens de que há tanta dignidade em perder as noites estudando ou trabalhando numa obra de arte, quanto em distribuir boletins e lutar pelo futuro. Não nos furtemos ao dever de participar da campanha , mas não esqueçamos os nossos deveres para com a arte e a literatura. Vivamos o nosso minuto, mas procurando, como Fausto, para-lo, num assomo de plenitude ".
Naquelas noites, portanto, que nos velem os verdadeiros amigos de literatura: A independência, a informação, a pesquisa intelectual, o esforço em fazer o melhor que possa ser feito, a persistência do treino e sempre, sobre essa persistência, a autocrítica... Tenho certeza que através dessas dificuldades aparentes surgirá em vossas mãos para ilumina-las o fogo de que falava o poeta: A força revolucionária da arte, indo adiante da ação, dos comícios, da propaganda e das manobrazinhas equívocas , dessa venda a retalho do ideal e da ideologia... Talvez se devesse formular um Manifesto aos críticos em torno desta idéia central: Prestigiemos a literatura!.
Patrícia Galvão, 1945.

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