sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Poeta, isto é, revolucionário


Se se procura o significado original da poesia, hoje dissimulada sob os mil ouropéis da sociedade, constata-se que ela é o verdadeiro sopro do homem, a fonte de todo conhecimento e esse conhecimento sob o seu aspecto mais imaculado.
Nela se condensa toda a vida espiritual da humanidade desde de que começou a tomar consciência de sua natureza; nela agora palpitam suas mais elevadas criações e, terra para sempre fecunda, conserva perpetuamente em reserva os cristais incolores e as colheitas de amanhã. Divindade tutelar de mil faces, aqui denominada amor, lá liberdade, alhures ciência. Ela permanece onipotente, ferve na narrativa mítica do esquimó, eclode na carta de amor, metralha o pelotão de execução que fuzila o operário exalando um último suspiro de Revolução social, portanto, de liberdade, chispa na descoberta do cientista, desvanece, lívida, até nas mais estúpidas produções que a invocam, e sua lembrança, louvor que gostaria de ser fúnebre, trepassa ainda as palavras mumificadas do padre, seu assassino, a quem o fiel escuta, procurando-a, cego e surdo, no túmulo do dogma onde ela não é mais do que falacioso pó.
Seus inumeraveis detratores, verdadeiros e falsos padres, mais hipócritas do que os sacerdotes de todas as igrejas, falsas testemunhas de todos os tempos, acusam-na de ser um meio de evasão, de fuga diante da realidade, como se ela não fosse a própria realidade, sua essência e sua exaltação. Todavia, incapazes de conceber a realidade em seu conjunto e suas complexas relações, eles só a querem ver sob seu aspecto mais imediato e mais sórdido. Só percebem o adultério sem nunca experimentar o amor, o avião de bombardeio sem se lembrar de Ícaro, o romance de aventuras sem compreender a aspiração poética permanente, elementar e profunda que ele tem a vã ambição de satisfazer. Desprezam o sonho em proveito de sua realidade como se o sonho não fosse um de seus aspectos, e o mais emocionante; exaltam a ação em detrimento da meditação como se a primeira sem a segunda não fosse um esporte tão insignificante quanto todo esporte.
Outrora, eles opunham o espírito á matéria, seu deus ao homem; hoje defendem a matéria contra o espírito. De fato é contra a intuição que se lançam, em proveito da razão, sem se lembrarem de onde brota essa razão.
Os inimigos da poesia sempre tiveram a obsessão de submetê-la a seus fins imediatos, esmaga-la sob seu deus, ou ágora, acorrenta-la á nobreza da nova divindade morena ou "vermelha" - vermelha escura de sangue seco- ainda mais sangrenta do que a antiga. Para eles, a vida e a cultura se resumem em útil e inútil, estando subentendido que o útil assume a forma de uma picareta manipulada em seu benefício. Para eles a poesia é o luxo do rico, aristocrata ou banqueiro, e se ela quiser se tornar "útil" á massa, deve se resignar ao destino das artes "aplicadas", "decorativas", "domésticas", etc.
Instintivamente, sentem, contudo, que ela é o ponto de apoio exigido por Arquimedes, e temem, que levantado, o mundo recaia sobre as suas cabeças. Dai resulta a ambição de aviltá-la, retirar-lhe toda a eficácia, todo valor de exaltação para lhe dar o papel hipocritamente consolador de uma irmã de caridade.
Mas o poeta não deve alimentar em outrem uma ilusória esperança humana ou celeste, nem desarmar os espíritos insuflando-lhes uma confiança sem limite num pai ou num chefe contra quem toda crítica torna-se sacrílega. Muito pelo contrário, cabe a ele pronunciar as palavras sempre sacrílegas e as blasfêmias permanentes. O poeta deve antes de mais nada, tomar consciência de sua natureza e de seu lugar no mundo. Inventor para quem a descoberta não é senão meio de alcançar uma nova descoberta, deve combater sem trégua os deuses paralisantes encariniçados em manter o homem em sua servidão em relação as forças sociais e á divindade que se completam mutuamente. Ele será, portanto, revolucionário, mas não daqueles que se opoem ao tirano de hoje, nefasto a seus olhos porque prejudica seus interesses, para vangloriar a excelência do opressor de amanhã do qual já se constituiram os serviçais. Não, o poeta luta contra toda a opressão de seu pensamento pelos dogmas religiosos, filosóficos ou sociais. Ele combate para que o homem alcance um conhecimento para sempre perfectivel de si mesmo e do universo. Disso não decorre que deseje colocar a poesia a serviço de uma ação política, mesmo revolucionária.Toda via, sua qualidade de poeta faz dele um revolucionário que deve combater em todos os terrenos: O da poesia, pelos meios próprios a esta, e o da ação social, sem nunca confundir os dois campos de ação sob pena de restabelecer a confusão que ele busca disspiar e, em seguida, cessar de ser poeta, isto é, revolucionário.
Benjamin Péret, 1951.

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