Haveria uma arte marxista, ou
melhor dizendo, uma Estética do marxismo? Esta é uma questão não resolvida,
pelo menos para quem reconhece a interdependência entre a arte e a sociedade.
Venho reparando que alguns jovens militantes (estudantes na sua maioria) andam
preocupados em estabelecer num repente só uma ligação muitas vezes apressada (porém,
válida enquanto tentativa) entre o Materialismo dialético e o universo das
artes. Esta garotada tá mesmo é muito certa nesta busca por respostas neste
campo tão maltratado por artistas alienados/vendidos e críticos comprometidos
com a Estética do cifrão; afinal de contas autores como Lukács tentaram definir
uma Estética marxista (espero que a garotada seja mais bem sucedida que o
filósofo húngaro).
Se existe algo que ainda me faz acreditar na
História enquanto processo de construção/transformação humana, é encontrar
estes jovens animados pela possibilidade de associar suas práticas artísticas
com as lições filosóficas de Marx e Engels. Realmente a moçada está criando,
fazendo arte (hoje por exemplo, ficou facinho, facinho fazer vídeos, gravar
canções, publicar textos em prosa e verso, tudo graças as novas tecnologias
digitais). A boa notícia é que entre estes jovens alguns querem conectar a arte
com o marxismo. Meus amores, meus amores... Este interesse político é coisa
rara! Não nos esqueçamos que hoje em dia existe toda uma produção ideológica
que funciona enquanto obstrução cultural para a juventude e os trabalhadores
compreenderem o verdadeiro funcionamento do sistema capitalista: faz parte
destes obstáculos ideológicos as limitações intelectuais impostas por
diferentes forças sociais que vão da cultura de massa á religião (não tenho
nada contra a religião em si ou qualquer instituição religiosa em particular,
mas não admito o uso ideológico da religião para justificar por exemplo a
miséria econômica, a hipocrisia sexual e o conformismo político). Bem, antes de
mais nada, estes jovens artistas e estudantes, ou simplesmente garotas e
garotos espertos que não curtem ser manipulados, precisam ter em mente que
compreender as relações entre arte e marxismo envolve um vespeiro danado. É
preciso investigar historicamente como esta relação vem sendo construída.
Em primeiro lugar os pais do Materialismo dialético Karl Marx e
Friedrich Engels não sistematizaram nenhum estudo aprofundado sobre a arte, não
desenvolveram uma Estética que representasse integralmente e oficialmente o seu
pensamento filosófico. Entretanto, Marx e Engels nos legaram escritos, anotações,
cartas e artigos que fornecem pistas para se compreender as relações entre as
artes e a sociedade ao longo da História. Cara, o que importa mesmo é que o
Materialismo dialético fornece um método de compreensão da totalidade social,
de investigação sobre o papel da cultura e da arte nos mais diferentes modos de
produção. Estando a arte localizada na esfera da superestrutura, Marx e Engels
sabiam exatamente a baita força política que a obra de arte possui enquanto
influência nos destinos da sociedade. Estes dois autores comunistas orientam
pelo seu método materialista o trabalho daqueles que querem dar um sentido político
combativo á arte: tendo no seu horizonte a luta de classes enquanto motor das
relações históricas, o artista revolucionário e o militante da cultura nos
mostram que a criação artística não pode estar indiferente a exploração
capitalista, sendo necessária uma posição da arte frente á propriedade privada,
o trabalho alienado e o Estado enquanto instrumento que no capitalismo serve á
burguesia. Por tabela, o artista comprometido com a causa dos trabalhadores
sabe do poder ideológico da arte para esclarecer e instruir, tornando a sua
obra o contraponto perante a ideologia dominante, fincada em todos os espaços
da cultura. Sendo assim meus jovens, o comunismo levanta a urgência da arte
falar em ideias políticas, pois a forma de comunicação da arte é única: ela mexe
com os nossos sentidos, chacoalha a gente pelo choque estético, mobiliza a
nossa sensibilidade ao mesmo tempo que nos faz pensar, que nos faz analisar objetivamente
a realidade. Razão e emoção, lógica e sensação são um todo para a arte que
prega a transformação da sociedade.
Do ponto de vista documental é de
extrema importância que se leia o livro SOBRE LITERATURA E ARTE, de Marx e Engels(saiu
pela Global Editora em 1979 e quem tiver sorte pode descolar algum exemplar nos
sebos da vida). Este livro reúne cartas, artigos e trechos de obras de Marx e
Engels referentes a temas ligados a literatura e a arte. Nestes textos
encontramos várias questões importantes como as relações entre os sentidos
humanos e a economia, a literatura e a indústria, o trabalho e o nascimento da
arte, a liberdade do escritor e a sua condição no capitalismo, o engajamento
político do artista e o Realismo enquanto forma de crítica social. É preciso
lembrar que o Realismo em literatura era a coisa mais quente do mundo durante a
segunda metade do século XIX, época em que Marx e Engels definiam as bases do seu
pensamento. A opção pelo Realismo é imprescindível para uma arte criada de
acordo com a orientação marxista , a ponto de afirmarmos que fora do Realismo
não existe arte revolucionária. O Realismo envolve a denúncia e a crítica
objetiva da realidade, revelando a totalidade histórica, expondo com crueza os
problemas humanos e os dramas sociais. O artista realista não fica floreando as
letras e as tintas, ele não se refugia no seu mundo interior e individualista:
ele olha para o mundo afim de transforma-lo. Logicamente que existem realistas
que podem ser politicamente conservadores, daí a importância do marxismo para
que a arte realista seja revolucionária. Entretanto a qualidade da obra literária/artística
não pode ser ofuscada pelo ativismo, pois a arte precisa ser bem feita. Caberia
assim destacar uma carta que Engels dirige á escritora Margaret Harkness, em
1888: Preocupado com o fato do engajamento político muitas vezes colocar em
segundo plano a qualidade literária do romance, Engels afirma que quanto mais
ocultas forem as opiniões políticas do escritor melhor é para a obra literária, pois deste modo a
literatura acabaria por revelar as contradições sociais que brotariam
naturalmente no plano da obra, mantendo assim a qualidade artística.
Ao longo do século XX as relações entre arte e Revolução política se intensificam
ao mesmo tempo em que a própria arte atravessa radicais transformações(tudo
isto rola primeiramente nos paises europeus, mas em breve atingiria diferentes
partes do planeta). A pintura passa por um processo de redefinição já que a
fotografia fez com que a mão humana comesse poeira diante do olho mecânico da
câmera. O filósofo alemão Walter Benjamin chama atenção para o fato das obras
de arte em meio a sua reprodutibilidade técnica fazerem com que as experiências
artísticas se distanciem dos problemas religiosos e se liguem a prática
política( para Benjamin o cinema seria a arte que melhor possui as condições
históricas para se falar revolucionariamente em política). Os primeiros anos do
novo século mostravam que enquanto o movimento operário lutava contra a
exploração capitalista, o cinema desbravava o imaginário, o teatro se
reinventava e a literatura junto á escultura e a pintura pulverizavam as
estruturas tradicionais, de origem clássica. Foi então em meio a este caldeirão
muito doido que se desenvolvem os movimentos de vanguarda e estoura a Revolução
russa de 1917.
Os primeiros movimentos de vanguarda tais como
o futurismo, o expressionismo e o cubismo , faziam uma arte que se propunha a
ser algo á frente do seu próprio tempo. O grande perigo das vanguardas é que na
maioria das vezes elas estão distantes da realidade das massas e dos problemas
nacionais da arte. Mas mesmo assim a arte de vanguarda é fundamental para
dinamizar a forma, para a criação de novas técnicas que ajudam na comunicação com
o povo(nem todo movimento de vanguarda é esteticista). Em meio as rupturas formais das vanguardas, o
acontecimento histórico que de fato assombrou a burguesia foi a Revolução russa
de 1917. Lênin, o cérebro dos bolcheviques e de fato o maior herdeiro do
pensamento de Marx, dizia já em 1905 que
a literatura e a arte deveriam estar a serviço do proletariado, a serviço do
Partido político que representava os interesses políticos da classe operária. Foi
lá na Rússia que as questões entre arte , vanguardas e marxismo tornam-se uma
verdadeira urgência cultural(afinal os trabalhadores já haviam tomado o poder).
Deste período cabe destacar a bravura do poeta Maiakóvski que junto a uma série
de outros artistas soviéticos procurava em meio as dificuldades e privações da
guerra civil(1918-21) criar uma arte de vanguarda que expressasse uma
transformação radical do modo de vida do povo russo: a arte gráfica dos
cartazes, as peças teatrais inspiradas no circo e cabarét, os filmes, a pintura
geométrica, a arquitetura comunitária, seriam exemplos da vanguarda soviética que
evoluiu do futurismo russo para o construtivismo russo(para maiores detalhes,
ler o ensaio COMPREENSÍVEL PARA AS MASSAS, escrito por Orestes Toledo e Afonso
Machado, publicado aqui no LANTERNA).
Pois bem, como o marxismo passa a responder as exigências culturais que
as novas realidades políticas do século XX impõem?. Leon Trotski, general do
Exército vermelho e intelectual marxista, respondeu com elegância e propriedade
a maneira como os comunistas devem proceder com os problemas de uma arte que se
liga á Revolução e que portanto torna-se
expressão cultural dos interesses históricos da classe operária. A obra
LITERATURA E REVOLUÇÃO(felizmente reeditada pela Zahar em 2007) ainda é uma
referência porreta para quem quiser entender as relações entre arte e
marxismo(devo assim discordar do meu amigo José Ferroso, embora já adiante para
ele que não me bandiei para a “ala trotskista “ do LANTERNA, rs rs). Talvez o
único problema do livro de Trotski é que em certo sentido ele não dá a devida
importância a necessidade cultural de se pensar/pesquisar no presente uma arte
socialista.
Ainda na União Soviética irá se desenvolver a Estética do Realismo
socialista, enquanto uma espécie de doutrina oficial da arte e da literatura
segundo o marxismo-leninismo. Resta saber se a experiência do Realismo
socialista(que também iria vigorar na China socialista de Mao Tse Tung e em
outros países que atravessariam Revoluções) trouxe alguma contribuição para se
pensar uma Estética marxista: é quase unânime entre intelectuais de esquerda a
rejeição do caráter de propaganda política do Realismo socialista(embora, como
lembra José Ferroso, geralmente se esquece com muita freqüência que a burguesia
hoje também faz uma implacável propaganda do capitalismo com a arte dominante
nos meios de comunicação de massa). A crítica mais comum é endereçada por
trotskistas e anarquistas que denunciam o que eles intitulam de servilismo e
violação dos procedimentos de criação artística, expondo desta maneira a falta
de liberdade na produção artística e denunciando o controle burocrático da arte(
para se compreender com profundidade estas críticas, ler os textos de André
Breton, fundador do movimento surrealista, em especial POSIÇÃO
POLÍTICA DO SURREALISMO
e o famosíssimo MANIFESTO POR UMA ARTE REVOLUCIONÁRIA INDEPENDENTE,
co-escrito com Trotski e também publicado aqui no LANTERNA) . Breton e outros
surrealistas estão certos em criticar a falta de liberdade e as formas
apelativas de propaganda no Realismo socialista(Realismo tem que ter
qualidade!). Mas daí, concordar com o subjetivismo dos surrealistas, são outros
quinhentos...
Para além destas críticas surrealistas e trotskizantes (é muito
previsível este flá-flu entre stalinistas e trotskistas, coisa que nem mais tem
cabimento hoje em dia), vale a pena se interar das discussões presentes no
livro LUKÁCS, BRECHT E A SITUAÇÃO ATUAL DO REALISMO SOCIALISTA, de Francisco
Posada(pra variar fora de catálogo: saiu em 1970 pela Civilização Brasileira).
Nesta obra é discutido com profundidade o conceito de Realismo enquanto sendo a
base para uma arte que traduza os interesses culturais dos trabalhadores. Para
tal é colocado em questão o famoso debate sobre o Expressionismo, ocorrido na
década de trinta, no qual o filósofo húngaro Lukács e o teatrólogo alemão
Bertolt Brecht(mas não apenas estes) travam uma polêmica discussão sobre as
contribuições do movimento expressionista para uma arte revolucionária. Lukács
era partidário de um Realismo tradicional, ultra-convencional e considerava
todas as inovações da arte de vanguarda como sendo “ decadência burguesa”.
Aliás com base nas suas convicções sobre o Realismo é que Lukács procura criar
uma Estética marxista oficial. Ele se baseou nos escritos de Marx e Engels
sobre o Realismo(que já comentei no começo deste artigo comprido) para extrair
uma doutrina estética para o Materialismo dialético. A tentativa de Lukács é
muito bacana, mas na minha opinião ele peca por negligenciar o desenvolvimento
histórico das necessidades expressivas na arte(o que passa pelas transformações
técnicas como mostrou Benjamin), pois o Realismo pode e deve ser aprimorado.
Trata-se de forçar a barra ao tentar pegar os textos esparsos de Marx e Engels
para se criar uma Estética marxista. Como eu já disse, fora do Realismo não é
possível avançar nos debates estéticos do marxismo, mas é preciso mesmo assim
abrir os olhos e enxergar as contribuições estéticas que outros movimentos
artísticos podem dar ao Realismo (por isso é que no citado debate sobre o
expressionismo, foi Brecht quem ganhou a parada: ele sabia da importância do
Realismo para a arte revolucionária, mas não queria ficar copiando o Realismo
do século XIX, afinal a História anda...).
Qual deveria ser a posição do escritor e do artista diante da sociedade
capitalista? Como a arte pode contribuir para análise que o marxismo faz da
realidade? Como o artista pode colaborar com a Revolução proletária? Sartre,
figura maior do Existencialismo francês, defende que o escritor/artista deve
ser engajado ou seja, a sua arte deve apresentar uma visão comprometida com a
realidade e logo com a transformação desta. Sartre acertou em cheio, mas ainda
assim é preciso saber como a arte engajada se comunica com o povo. Grandes
artistas retiraram lições do Materialismo dialético para a criação de uma arte
que entre em contato direto com os trabalhadores. Dentre os maiores exemplos
disso encontramos o cinema de Eisenstein(aqui a montagem cinematográfica
envolve a tese, a antítese e a síntese), o teatro épico de Brecht(o
anti-ilusionismo cênico permite a reflexão através do distanciamento crítico),
a pintura de Siqueiros (o muralismo mexicano criou uma arte pública e popular
que abordou didaticamente a luta de classes na História do México), etc.
O marxista italiano Gramsci defende que a arte
deve expressar as tradições populares, deve ser a representação dos interesses
nacionais contra um cosmopolitismo desenraizado(típico das vanguardas). Gramsci
mostra a importância do nacional-popular em arte, para que o artista se
comunique objetivamente com os trabalhadores, de acordo com a realidade
cultural concreta destes mesmos trabalhadores. Gramsci está certíssimo, pois se
a arte não se comunica com o povo, se a arte não for realista e popular, se estiver
desvinculada da realidade nacional, ela deixa de ser revolucionária.
Esta
questão do nacional-popular foi muito forte na arte brasileira (não no sentido
gramsciano) como nos mostra a atuação dos artistas e intelectuais ligados ao
CPC(Centro Popular de Cultura), que até o golpe militar de 1964 contribuiu para
retirar nossos artistas da torre de marfim e de acordo com as lições do
marxismo-leninismo criar uma arte popular revolucionária brasileira(ler o
trecho do manifesto do CPC publicado recentemente no LANTERNA). Antes e depois
do CPC encontramos na História artística e literária brasileira outros grandes
exemplos de engajamento que contribuem para a criação de uma arte segundo a
filosofia política do marxismo: gente é o que não falta como os escritores
regionalistas da década de trinta, com sua literatura poderosa e documental na
denúncia dos problemas sociais(José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge
Amado, para citar os maiores ), a literatura proletária de Patrícia Galvão, a
pintura social de Di Cavalcanti e Portinari, a música popular de protesto em
grandes compositores como Chico Buarque e
Zé Kéti e na voz de cantoras como Nara Leão e Maria Bethânia, o cinema
político de Glauber Rocha, o teatro político de Augusto Boal, etc, etc e etc.
Lembrando que tudo isso traz uma contribuição original para aqueles que desejam
pensar uma arte de acordo com os pressupostos do marxismo.
Como avançar na criação de uma arte que se propõe a ser expressão do
pensamento marxista? O único jeito é estudar a História revolucionária da arte,
não retirar o Realismo do horizonte estético e criar coisas novas.
Lúcia Gravas
Excelente!Obrigada!
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