terça-feira, 12 de março de 2013

Arte e Marxismo




Haveria uma arte marxista, ou melhor dizendo, uma Estética do marxismo? Esta é uma questão não resolvida, pelo menos para quem reconhece a interdependência entre a arte e a sociedade. Venho reparando que alguns jovens militantes (estudantes na sua maioria) andam preocupados em estabelecer num repente só uma ligação muitas vezes apressada (porém, válida enquanto tentativa) entre o Materialismo dialético e o universo das artes. Esta garotada tá mesmo é muito certa nesta busca por respostas neste campo tão maltratado por artistas alienados/vendidos e críticos comprometidos com a Estética do cifrão; afinal de contas autores como Lukács tentaram definir uma Estética marxista (espero que a garotada seja mais bem sucedida que o filósofo húngaro).
 Se existe algo que ainda me faz acreditar na História enquanto processo de construção/transformação humana, é encontrar estes jovens animados pela possibilidade de associar suas práticas artísticas com as lições filosóficas de Marx e Engels. Realmente a moçada está criando, fazendo arte (hoje por exemplo, ficou facinho, facinho fazer vídeos, gravar canções, publicar textos em prosa e verso, tudo graças as novas tecnologias digitais). A boa notícia é que entre estes jovens alguns querem conectar a arte com o marxismo. Meus amores, meus amores... Este interesse político é coisa rara! Não nos esqueçamos que hoje em dia existe toda uma produção ideológica que funciona enquanto obstrução cultural para a juventude e os trabalhadores compreenderem o verdadeiro funcionamento do sistema capitalista: faz parte destes obstáculos ideológicos as limitações intelectuais impostas por diferentes forças sociais que vão da cultura de massa á religião (não tenho nada contra a religião em si ou qualquer instituição religiosa em particular, mas não admito o uso ideológico da religião para justificar por exemplo a miséria econômica, a hipocrisia sexual e o conformismo político). Bem, antes de mais nada, estes jovens artistas e estudantes, ou simplesmente garotas e garotos espertos que não curtem ser manipulados, precisam ter em mente que compreender as relações entre arte e marxismo envolve um vespeiro danado. É preciso investigar historicamente como esta relação vem sendo construída.
    Em primeiro lugar os pais do Materialismo dialético Karl Marx e Friedrich Engels não sistematizaram nenhum estudo aprofundado sobre a arte, não desenvolveram uma Estética que representasse integralmente e oficialmente o seu pensamento filosófico. Entretanto, Marx e Engels nos legaram escritos, anotações, cartas e artigos que fornecem pistas para se compreender as relações entre as artes e a sociedade ao longo da História. Cara, o que importa mesmo é que o Materialismo dialético fornece um método de compreensão da totalidade social, de investigação sobre o papel da cultura e da arte nos mais diferentes modos de produção. Estando a arte localizada na esfera da superestrutura, Marx e Engels sabiam exatamente a baita força política que a obra de arte possui enquanto influência nos destinos da sociedade. Estes dois autores comunistas orientam pelo seu método materialista o trabalho daqueles que querem dar um sentido político combativo á arte: tendo no seu horizonte a luta de classes enquanto motor das relações históricas, o artista revolucionário e o militante da cultura nos mostram que a criação artística não pode estar indiferente a exploração capitalista, sendo necessária uma posição da arte frente á propriedade privada, o trabalho alienado e o Estado enquanto instrumento que no capitalismo serve á burguesia. Por tabela, o artista comprometido com a causa dos trabalhadores sabe do poder ideológico da arte para esclarecer e instruir, tornando a sua obra o contraponto perante a ideologia dominante, fincada em todos os espaços da cultura. Sendo assim meus jovens, o comunismo levanta a urgência da arte falar em ideias políticas, pois a forma de comunicação da arte é única: ela mexe com os nossos sentidos, chacoalha a gente pelo choque estético, mobiliza a nossa sensibilidade ao mesmo tempo que nos faz pensar, que nos faz analisar objetivamente a realidade. Razão e emoção, lógica e sensação são um todo para a arte que prega a transformação da sociedade.
   Do ponto de vista documental é de extrema importância que se leia o livro SOBRE LITERATURA E ARTE, de Marx e Engels(saiu pela Global Editora em 1979 e quem tiver sorte pode descolar algum exemplar nos sebos da vida). Este livro reúne cartas, artigos e trechos de obras de Marx e Engels referentes a temas ligados a literatura e a arte. Nestes textos encontramos várias questões importantes como as relações entre os sentidos humanos e a economia, a literatura e a indústria, o trabalho e o nascimento da arte, a liberdade do escritor e a sua condição no capitalismo, o engajamento político do artista e o Realismo enquanto forma de crítica social. É preciso lembrar que o Realismo em literatura era a coisa mais quente do mundo durante a segunda metade do século XIX, época em que Marx e Engels definiam as bases do seu pensamento. A opção pelo Realismo é imprescindível para uma arte criada de acordo com a orientação marxista , a ponto de afirmarmos que fora do Realismo não existe arte revolucionária. O Realismo envolve a denúncia e a crítica objetiva da realidade, revelando a totalidade histórica, expondo com crueza os problemas humanos e os dramas sociais. O artista realista não fica floreando as letras e as tintas, ele não se refugia no seu mundo interior e individualista: ele olha para o mundo afim de transforma-lo. Logicamente que existem realistas que podem ser politicamente conservadores, daí a importância do marxismo para que a arte realista seja revolucionária. Entretanto a qualidade da obra literária/artística não pode ser ofuscada pelo ativismo, pois a arte precisa ser bem feita. Caberia assim destacar uma carta que Engels dirige á escritora Margaret Harkness, em 1888: Preocupado com o fato do engajamento político muitas vezes colocar em segundo plano a qualidade literária do romance, Engels afirma que quanto mais ocultas forem as opiniões políticas do escritor melhor é  para a obra literária, pois deste modo a literatura acabaria por revelar as contradições sociais que brotariam naturalmente no plano da obra, mantendo assim a qualidade artística.  
   Ao longo do século XX as relações entre arte e Revolução política se intensificam ao mesmo tempo em que a própria arte atravessa radicais transformações(tudo isto rola primeiramente nos paises europeus, mas em breve atingiria diferentes partes do planeta). A pintura passa por um processo de redefinição já que a fotografia fez com que a mão humana comesse poeira diante do olho mecânico da câmera. O filósofo alemão Walter Benjamin chama atenção para o fato das obras de arte em meio a sua reprodutibilidade técnica fazerem com que as experiências artísticas se distanciem dos problemas religiosos e se liguem a prática política( para Benjamin o cinema seria a arte que melhor possui as condições históricas para se falar revolucionariamente em política). Os primeiros anos do novo século mostravam que enquanto o movimento operário lutava contra a exploração capitalista, o cinema desbravava o imaginário, o teatro se reinventava e a literatura junto á escultura e a pintura pulverizavam as estruturas tradicionais, de origem clássica. Foi então em meio a este caldeirão muito doido que se desenvolvem os movimentos de vanguarda e estoura a Revolução russa de 1917.
 Os primeiros movimentos de vanguarda tais como o futurismo, o expressionismo e o cubismo , faziam uma arte que se propunha a ser algo á frente do seu próprio tempo. O grande perigo das vanguardas é que na maioria das vezes elas estão distantes da realidade das massas e dos problemas nacionais da arte. Mas mesmo assim a arte de vanguarda é fundamental para dinamizar a forma, para a criação de novas técnicas que ajudam na comunicação com o povo(nem todo movimento de vanguarda é esteticista).  Em meio as rupturas formais das vanguardas, o acontecimento histórico que de fato assombrou a burguesia foi a Revolução russa de 1917. Lênin, o cérebro dos bolcheviques e de fato o maior herdeiro do pensamento de Marx,  dizia já em 1905 que a literatura e a arte deveriam estar a serviço do proletariado, a serviço do Partido político que representava os interesses políticos da classe operária. Foi lá na Rússia que as questões entre arte , vanguardas e marxismo tornam-se uma verdadeira urgência cultural(afinal os trabalhadores já haviam tomado o poder). Deste período cabe destacar a bravura do poeta Maiakóvski que junto a uma série de outros artistas soviéticos procurava em meio as dificuldades e privações da guerra civil(1918-21) criar uma arte de vanguarda que expressasse uma transformação radical do modo de vida do povo russo: a arte gráfica dos cartazes, as peças teatrais inspiradas no circo e cabarét, os filmes, a pintura geométrica, a arquitetura comunitária, seriam exemplos da vanguarda soviética que evoluiu do futurismo russo para o construtivismo russo(para maiores detalhes, ler o ensaio COMPREENSÍVEL PARA AS MASSAS, escrito por Orestes Toledo e Afonso Machado, publicado aqui no LANTERNA).     
   Pois bem, como o marxismo passa a responder as exigências culturais que as novas realidades políticas do século XX impõem?. Leon Trotski, general do Exército vermelho e intelectual marxista, respondeu com elegância e propriedade a maneira como os comunistas devem proceder com os problemas de uma arte que se liga á  Revolução e que portanto torna-se expressão cultural dos interesses históricos da classe operária. A obra LITERATURA E REVOLUÇÃO(felizmente reeditada pela Zahar em 2007) ainda é uma referência porreta para quem quiser entender as relações entre arte e marxismo(devo assim discordar do meu amigo José Ferroso, embora já adiante para ele que não me bandiei para a “ala trotskista “ do LANTERNA, rs rs). Talvez o único problema do livro de Trotski é que em certo sentido ele não dá a devida importância a necessidade cultural de se pensar/pesquisar no presente uma arte socialista.   
  Ainda na União Soviética irá se desenvolver a Estética do Realismo socialista, enquanto uma espécie de doutrina oficial da arte e da literatura segundo o marxismo-leninismo. Resta saber se a experiência do Realismo socialista(que também iria vigorar na China socialista de Mao Tse Tung e em outros países que atravessariam Revoluções) trouxe alguma contribuição para se pensar uma Estética marxista: é quase unânime entre intelectuais de esquerda a rejeição do caráter de propaganda política do Realismo socialista(embora, como lembra José Ferroso, geralmente se esquece com muita freqüência que a burguesia hoje também faz uma implacável propaganda do capitalismo com a arte dominante nos meios de comunicação de massa). A crítica mais comum é endereçada por trotskistas e anarquistas que denunciam o que eles intitulam de servilismo e violação dos procedimentos de criação artística, expondo desta maneira a falta de liberdade na produção artística e denunciando o controle burocrático da arte( para se compreender com profundidade estas críticas, ler os textos de André Breton, fundador do movimento surrealista, em especial POSIÇÃO POLÍTICA DO SURREALISMO  e o famosíssimo MANIFESTO POR UMA ARTE REVOLUCIONÁRIA INDEPENDENTE, co-escrito com Trotski e também publicado aqui no LANTERNA) . Breton e outros surrealistas estão certos em criticar a falta de liberdade e as formas apelativas de propaganda no Realismo socialista(Realismo tem que ter qualidade!). Mas daí, concordar com o subjetivismo dos surrealistas, são outros quinhentos...
  Para além destas críticas surrealistas e trotskizantes (é muito previsível este flá-flu entre stalinistas e trotskistas, coisa que nem mais tem cabimento hoje em dia), vale a pena se interar das discussões presentes no livro LUKÁCS, BRECHT E A SITUAÇÃO ATUAL DO REALISMO SOCIALISTA, de Francisco Posada(pra variar fora de catálogo: saiu em 1970 pela Civilização Brasileira). Nesta obra é discutido com profundidade o conceito de Realismo enquanto sendo a base para uma arte que traduza os interesses culturais dos trabalhadores. Para tal é colocado em questão o famoso debate sobre o Expressionismo, ocorrido na década de trinta, no qual o filósofo húngaro Lukács e o teatrólogo alemão Bertolt Brecht(mas não apenas estes) travam uma polêmica discussão sobre as contribuições do movimento expressionista para uma arte revolucionária. Lukács era partidário de um Realismo tradicional, ultra-convencional e considerava todas as inovações da arte de vanguarda como sendo “ decadência burguesa”. Aliás com base nas suas convicções sobre o Realismo é que Lukács procura criar uma Estética marxista oficial. Ele se baseou nos escritos de Marx e Engels sobre o Realismo(que já comentei no começo deste artigo comprido) para extrair uma doutrina estética para o Materialismo dialético. A tentativa de Lukács é muito bacana, mas na minha opinião ele peca por negligenciar o desenvolvimento histórico das necessidades expressivas na arte(o que passa pelas transformações técnicas como mostrou Benjamin), pois o Realismo pode e deve ser aprimorado. Trata-se de forçar a barra ao tentar pegar os textos esparsos de Marx e Engels para se criar uma Estética marxista. Como eu já disse, fora do Realismo não é possível avançar nos debates estéticos do marxismo, mas é preciso mesmo assim abrir os olhos e enxergar as contribuições estéticas que outros movimentos artísticos podem dar ao Realismo (por isso é que no citado debate sobre o expressionismo, foi Brecht quem ganhou a parada: ele sabia da importância do Realismo para a arte revolucionária, mas não queria ficar copiando o Realismo do século XIX, afinal a História anda...).
     Qual deveria ser a posição do escritor e do artista diante da sociedade capitalista? Como a arte pode contribuir para análise que o marxismo faz da realidade? Como o artista pode colaborar com a Revolução proletária? Sartre, figura maior do Existencialismo francês, defende que o escritor/artista deve ser engajado ou seja, a sua arte deve apresentar uma visão comprometida com a realidade e logo com a transformação desta. Sartre acertou em cheio, mas ainda assim é preciso saber como a arte engajada se comunica com o povo. Grandes artistas retiraram lições do Materialismo dialético para a criação de uma arte que entre em contato direto com os trabalhadores. Dentre os maiores exemplos disso encontramos o cinema de Eisenstein(aqui a montagem cinematográfica envolve a tese, a antítese e a síntese), o teatro épico de Brecht(o anti-ilusionismo cênico permite a reflexão através do distanciamento crítico), a pintura de Siqueiros (o muralismo mexicano criou uma arte pública e popular que abordou didaticamente a luta de classes na História do México), etc.
 O marxista italiano Gramsci defende que a arte deve expressar as tradições populares, deve ser a representação dos interesses nacionais contra um cosmopolitismo desenraizado(típico das vanguardas). Gramsci mostra a importância do nacional-popular em arte, para que o artista se comunique objetivamente com os trabalhadores, de acordo com a realidade cultural concreta destes mesmos trabalhadores. Gramsci está certíssimo, pois se a arte não se comunica com o povo, se a arte não for realista e popular, se estiver desvinculada da realidade nacional, ela deixa de ser revolucionária.
  Esta questão do nacional-popular foi muito forte na arte brasileira (não no sentido gramsciano) como nos mostra a atuação dos artistas e intelectuais ligados ao CPC(Centro Popular de Cultura), que até o golpe militar de 1964 contribuiu para retirar nossos artistas da torre de marfim e de acordo com as lições do marxismo-leninismo criar uma arte popular revolucionária brasileira(ler o trecho do manifesto do CPC publicado recentemente no LANTERNA). Antes e depois do CPC encontramos na História artística e literária brasileira outros grandes exemplos de engajamento que contribuem para a criação de uma arte segundo a filosofia política do marxismo: gente é o que não falta como os escritores regionalistas da década de trinta, com sua literatura poderosa e documental na denúncia dos problemas sociais(José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Jorge Amado, para citar os maiores ), a literatura proletária de Patrícia Galvão, a pintura social de Di Cavalcanti e Portinari, a música popular de protesto em grandes compositores como Chico Buarque e  Zé Kéti e na voz de cantoras como Nara Leão e Maria Bethânia, o cinema político de Glauber Rocha, o teatro político de Augusto Boal, etc, etc e etc. Lembrando que tudo isso traz uma contribuição original para aqueles que desejam pensar uma arte de acordo com os pressupostos do marxismo.
    Como avançar na criação de uma arte que se propõe a ser expressão do pensamento marxista? O único jeito é estudar a História revolucionária da arte, não retirar o Realismo do horizonte estético e criar coisas novas.


                                              Lúcia Gravas     

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