É sabido que o cinema é o veículo mais avançado, para problematizar esteticamente, as contradições da realidade social. Ao mesmo tempo, a fotografia que capta e disseca a vida em sociedade, necessita no cinema de estruturas narrativas que remetem á literatura. Neste casamento entre linguagens distintas, nasce a adaptação cinematográfica do texto literário: é neste momento em que o cineasta estabelece a sua leitura da obra do escritor. Concebendo ambos enquanto autores, fica implícita a responsabilidade política que eles possuem diante de um país como o Brasil; responder literariamente ou cinematograficamente aos impasses de um país miserável, é uma tarefa inadiável do artista engajado. Em nossa História o escritor Graciliano Ramos e o cineasta Nelson Pereira dos Santos, tiveram um " encontro " precioso com a adaptação cinematográfica do romance Vidas Secas. Sendo este o filme que exibiremos esta noite no MIS de Campinas(conferir horário logo após este texto), não podemos deixar de acrescentar que este feliz encontro do romance de Graciliano Ramos com o cinema de Nelson Pereira dos Santos, pertence na verdade a uma relação programática entre o movimento do Cinema Novo dos anos sessenta e a Literatura de 30.
Em artigo recente publicado no nosso blog, escrevia eu que o romance social de 30 ainda é uma fonte preciosa para se refletir (dentro da prosa moderna e realista) sobre os problemas regionais. A ação literária que busca desvendar pelo romance as diferenças entre as classes sociais, expondo os conflitos entre os homens e o meio(social e natural), encontra no cinema um instrumento para fazer brotar atmosferas visuais em torno da estrutura literária. Se o regionalismo da literatura brasileira dos anos trinta, significou o amadurecimento estético e temático do nosso moderno romance, o mesmo pode ser dito sobre o Cinema Novo em relação a nossa História cinematográfica. Glauber Rocha deixou registrado mais de uma vez em seus textos, a necessidade do Cinema Novo cumprir o mesmo papel da Literatura de 30, ou seja lançar um olhar objetivo, moderno e autenticamente brasileiro sobre os problemas sociais. Se as páginas dos romances de Graciliano Ramos, Raquel de Queirós, Jorge Amado e José Lins do Rego são povoados por homens e mulheres explorados em regiões do país historicamente abandonadas pela economia capitalista, o mesmo ocorre em relação a alguns dos filmes de cineastas como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Glauber Rocha(no caso de Glauber, é evidente a influência da estética de José Lins do Rego, por exemplo).
Vidas Secas é um poderoso romance social escrito por Graciliano Ramos em 1938, chegando ao cinema em 1963 pela lente igualmente comprometida de Nelson Pereira.O filme traduz com extrema sensibilidade o horizonte árido, a miséria econômica e linguística de uma família vitima das injustiças sociais do nordeste. Filmado no sertão de Alagoas, o longa consegue exprimir pelo som do carro de boi e pelas imagens de uma vegetação seca, a própria secura de um país cuja organização econômica beneficia tão somente a classe dominante. A influência direta da estética do neo realismo italiano encontra o denominador plástico para a prosa de Graciliano. Os personagens Fabiano e Sinhá Vitória(magistralmente interpretados por Átila Iório e Maria Ribeiro) são figuras humanas que não desapareceram da nossa formação social, sendo portanto pertinente a sua existência no objeto literário ou cinematográfico de hoje. Da mesma maneira com que Graciliano, na terceira pessoa , narra as desventuras desta família dentro de uma prosa realista mas que não faz uso do protesto e do panfletarismo(tão comuns na Literatura de 30) , Nelson faz um filme objetivamente realista. O compromisso político do livro e do filme se exprime na própria realidade objetiva, de onde nasce tanto a miséria econômica quanto a repressão social encarnada na figura do Soldado Amarelo(um símbolo literário para representar a opressão política dos tempos do Estado Novo, de Getúlio Vargas).
Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos são autores de fato. Eles revelam com Vidas Secas o intercambio estético e político entre o melhor da nossa literatura e o melhor do nosso cinema. É um produto vivo que traduz num único objeto o engajamento das décadas de trinta e sessenta. As lições literárias e cinematográficas destes dois autores, ainda estão na ordem do dia.
Geraldo Vermelhão
FILME: Vidas Secas
ANO: 1963
DIREÇÃO: Nelson Pereira dos Santos
LOCAL: Museu da Imagem e do Som de Campinas
DIA: 2 de novembro
HORÁRIO: 19:30
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