Esquisito, mas a facilidade com que a música é reproduzida hoje através da tecnologia digital, tem levado paradoxalmente a uma espécie de nostalgia do disco. Isto atinge parte do público jovem em várias regiões do mundo , fascinado pelo vinil, sobretudo pelo formato do LP. Tá, mas o que esta história de disco tem a acrescentar ao papel revolucionário que a música pode exercer? Até o ouvinte mais desatento ás questões sociais, sabe que o disco é antes de tudo comércio, uma mina que no século passado movia negócios milionários entre gravadoras. Mas ainda assim, será que é só isso? Quando a garotada se sente atraída pelo velho bolachão, é porque trata-se de um objeto definido, concreto e não um espectro musical que encarna e desencarna nos meios digitais. Esta " concretude " que define uma " obra de arte " em mãos, demonstra a necessidade de se estabelecer uma relação mais ritualística com a música, possibilitando inclusive que as faixas do disco sejam possíveis produtos de crítica social e expressões de rebeldia.
Já se escreveu muito neste blog que a arte para ser revolucionária, precisa nascer e circular em meios de produção culturais independentes. Correto, mas para que isso se manifeste na produção e nos hábitos musicais, é preciso levar em conta a importância do álbum neste processo. Até a primeira metade dos anos sessenta, o LP(Long Play) em grande parte, trazia a canção de um single ou as canções de um compacto, que por sua vez eram articulados com as rádios comerciais(os hits radiofônicos). Esta era uma realidade específica da música pop, do rock; antes porém os discos de música clássica e de jazz já potencializavam o instrumento do disco, organizando cada faixa como parte de uma coerência estética interna, como um produto que possuí uma distinção quanto a sua natureza musical. Enquanto a produção clássica enfrentava uma redução de compositores e de público, nos anos quarenta e cinquenta o jazz em suas derivações estilísticas(bebop e posteriormente o cool jazz) já fazia do disco um terreno de aprimoramento para suas propostas artísticas. É só olhar Miles Davis, que em 1959, por exemplo, fez de seu álbum Kind of Blue um gesto duradouro de vanguarda.
Com a música de protesto e as experiências de contracultura, os anos sessenta fermentaram o espaço do disco: apesar de tudo ser grana para as gravadoras capitalistas, jovens músicos converteram o vinil em plataforma para projetar o protesto político e expressar as fundamentais mudanças de comportamento. Seja no Brasil ou nos Estados Unidos, fazia-se ainda que por razões distintas, o protesto acústico: os sambas de Chico Buarque tratavam da miséria social e da repressão política. A folk song de Bob Dylan denunciava a guerra e o racismo; e tudo era gravado em disco, colocando todo mundo para pensar, seja num quarto, seja numa reunião de amigos que compartilhavam das mesmas posições políticas. Não que a música de protesto não existisse e não fosse gravada antes: é que agora o disco também poderia ser entendido como um manifesto musical.
A entrada do rock aumentando o volume do descontentamento social, fez com que este de fato revolucionasse a estrutura do disco. Até a banda mais comercial da terra, os Beatles, começam a partir de 1966 catalisar no plano do álbum as grandes transformações mentais da juventude. Quando o quarteto de Liverpool sacou que o seu desenvolvimento artístico só poderia se dar no estúdio, e portanto distante da beatlemania dos shows, novas estruturas musicais envoltas em experiências sonoras sofisticadíssimas, nascem em discos como Revolver(1966) e Sgt Pepper´s Lonely Hearts Club Band(1967). Entre os anos sessenta e setenta o disco passa a ser compreendido como um livro, um filme, uma coleção de pinturas. "Arghh...", seria só comércio disfarçado de arte? Dialeticamente o processo comercial capitalista em sua distribuição internacional, fez com que o material fonográfico dos discos rodasse o mundo, internacionalizando assim a rebeldia de gente como Jimi Hendrix. Quem poderia negar que as revoltas de 1968 tinham no disco sua projeção simbólica? E como tinha gente que buscava nas capas dos LP´s ou rodando o disco ao contrário na vitrola, mensagens políticas e transgressoras. Além do rock uma ampla gama de estilos musicais passam a dar voz, pelo disco, á diversas minorias étnicas, sexuais e de classe. Nem mesmo o mais cético crítico da indústria cultural poderia negar que nas últimas décadas do século XX, o disco apesar do comércio exprimiu a crítica social.
O que poderia ser o disco hoje? Apenas nostalgia ou um contexto musical que se apropriado corretamente pelas esquerdas, pode ser um espaço de rica exposição musical? O disco não acabou, os lançamentos de CD também não. Mas, enquanto desafio, muitos artistas devem na democratização direta da música do meio digital, refletir sobre formatos que germinem trabalhos em formas de discos(numa circulação nova e de fato independente, como muitos já o fazem). Estamos diante da possibilidade histórica do disco se aproximar mais da arte e menos do comércio, mais da resistência política e menos da indústria fonográfica.
Tupinik
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