Ás 15:55 da tarde do último sábado, os passantes em frente a Catedral da cidade de Campinas, começavam a perceber uma interrupção na paisagem cotidiana. O Barroco da Catedral parecia ceder espaço a uma outra estética, despojada e moderna, cênica-livre e não arquitetônica-fixa, objetiva e não ilusionista. Num quadrado margeado por correntes brancas, os atores do grupo teatral Estudo de Cena, faziam os últimos preparativos para a peça A Farsa da Justiça. A participação do grupo paulista na Mostra Luta! no MIS, trouxe a raríssima oportunidade para os trabalhadores de Campinas presenciarem/participarem de uma genuína manifestação de teatro político.
Escrita pelo autor Sérgio de Carvalho por ocasião da Marcha do MST em 2006, a peça foi realizada em conjunto com o Coletivo de Cultura do MST,cabendo destacar ainda o pessoal do grupo Filhos da Mãe...Terra. A montagem é uma violenta crítica ás autoridades comprometidas com a manutenção da ordem capitalista. Modelando o texto de acordo com cada contexto de apresentação, o grupo faz uma síntese formidável entre o popular e o experimental. Fica evidente o alto volume expressivo que o espetáculo adquire com as revoltas sociais que tomaram de assalto o país a partir de junho de 2013: a opressão nas ruas é respondida com a força política do teatro.
Ancorado na estética de Brecht, o diretor Diogo Noventa vai além da " quebra da ação " promovida pelo teatrólogo alemão: o espectador é chamado a participar, a se engajar, não apenas mentalmente, mas em alguns momentos, fisicamente. Sob o prisma da luta de classes, o espetáculo faz uso da canção, de poucos recursos e do humor selvagem para ridicularizar a hierarquia social e denunciar a opressão contra os trabalhadores: uma História dos vencidos, para remetermo-nos a Walter Benjamin, é potencializada por este teatro útil, prático e de comunicação direta com o público. Seja ironizando os limites da democracia burguesa, seja utilizando a lente crítica para desafiar o nivelamento entre as classes(em que fazendeiros, juízes, policiais, empresários e trabalhadores tomam parte em uma análise dialética), o grupo Estudo de Cena nos brindou com uma tarde que coloca o teatro na sua dimensão exata: uma reflexão crítica sobre a realidade.
Após o espetáculo, atores e público seguiram para o MIS, a maior trincheira cultural da cidade, para um produtivo debate. Quando perguntado por nós sobre a eficácia política do teatro, Diogo afirmou que " O grupo não se pergunta sobre a eficácia, mas sobre a necessidade da criação de um material simbólico que faz frente á indústria cultural. Contra um imaginário simbólico encontrado na TV e no cinema comercial, o grupo encara o problema do número reduzido de pessoas atingidas pelo teatro hoje ". Mais adiante, o diretor explica que " não procuramos uma atuação diferenciada para cada público, seja ele da classe média ou da classe trabalhadora(e queremos que a classe média se entenda como classe trabalhadora). Somos artistas trabalhadores que procuram ler os diferentes assuntos sob um ponto de vista crítico ". A atriz Juliana Liegel ilustra a recepção das peças do grupo a partir das diferenças entre as classes sociais: " Quando nos apresentamos em avenidas movimentadas de São Paulo como a Faria Lima ou a Paulista, as pessoas de classe média sentadas nos cafés, saem de perto, ignoram a peça. Por outro lado, trabalhadores que passam apressadamente(devido aos seus empregos), olham com atenção, parecem ter grande interesse naquilo que fazemos ". Além de atuarem no espaço Engenho na cidade de São Paulo, o grupo procura a rua enquanto elemento que fortalece o teatro político: como afirma a atriz Marilza Batista " Encontramos uma grande potência política no espaço público ". O grupo Estudo de Cena faz uma opção de classe: seu compromisso com o proletariado o situa no campo político da esquerda. Entretanto, o grupo " não possui filiação a nenhuma organização política ", afirma Diogo.
O debate atinge o seu clímax quando é colocada a questão da autonomia ou não do artista revolucionário diante do poder público e das organizações de esquerda.Para o grupo, é preciso fazer uso das leis que oferecem a possibilidade de financiamento de dinheiro público para viabilizar espetáculos. Segundo Diogo: " Não existe independência para a arte, pois as condições materiais de produção capitalista não permitem falarmos em autonomia ". Devemos nos lembrar que esta posição não é unânime entre os militantes da cultura, deflagrando assim tanto aqueles que defendem o uso de recursos governamentais quanto aqueles que pregam a autonomia dos meios de produção culturais. Quando perguntado se o artista deve estar submetido ás diretrizes de um Partido revolucionário, o diretor é enfático: " Num contexto revolucionário, o artista deve sim seguir as determinações políticas ". Para o leitor familiarizado com os debates internos do nosso blog, é de se supor o quanto isso é reprovável dentro da " ala " que compreende trotskistas e anarquistas(dentro da qual o próprio autor destas linhas se insere...). No entanto, o mal entendido é esclarecido quando Juliana diz que " o grupo não segue nenhuma determinação na criação, no campo estético, não se tratando de Realismo Socialista ". E Diogo complementa: " Quando me referi a ausência de independência, é no sentido das condições concretas, materiais de produção. Acredito que o artista deva ter autonomia para as suas escolhas estéticas ". Mesmo defendendo leis que permitam o uso de verbas públicas, o grupo é extremamente simpático ás atividades de outros militantes da arte que buscam agir sem nenhum tipo de financiamento público ou privado.
Polêmicas a parte, o fato é que o grupo Estudo de Cena se insere na melhor tradição guerrilheira do teatro brasileiro. Seu compromisso de classe expresso nas suas escolhas estéticas, nos leva a constatar que este grupo coloca em cena a politização da arte.
Afonso Machado
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