Os Fuzis(1963), filme que exibiremos esta noite, é uma das mais altas expressões do cinema político nacional. O longa de Ruy Guerra é um convide audiovisual que contrasta radicalmente com a linguagem e o estilo do cinema dos nossos dias; recusando a velocidade industrial de imagens descartáveis, este filme se detém em longas tomadas, que captam pela fotografia realista a miséria nordestina e a truculência das autoridades. Um exemplo claro disso é um sertanejo arrancando uma raiz para matar a fome.
No filme, soldados são chamados até um vilarejo para perpetuar a ordem e impedir que os moradores famintos cometam saques. Um grande valor sociológico é apresentado sem sociologismos, pois a câmera cinemanovista convida o espectador a sentir-se incomodado com uma forma de organização social em que a ordem implica em perpetuar a miséria, a fome de um povo com fuzis apontados para suas próprias cabeças. É como se Ruy Guerra capturasse o soldado amarelo do livro Vidas Secas de Graciliano Ramos, e dissecasse sua consciência: os soldados do filme, igualmente de origem popular, não compreendem as razões sociais da miséria, e graças a construção ideológica dominante desprezam os sertanejos, como se a fome e a pobreza fossem resultados da " indolência ", da " preguiça ".
O que chama nossa atenção em Os Fuzis é a exposição objetiva do drama social, suscitando em cada quadro uma reflexão sobre o poder das armas sobre o povo, o verdadeiro papel político da força do Estado.Em texto, Glauber Rocha comentou a crítica precisa do cineasta: em uma cena, um soldado de olhos vendados, arma o seu fuzil e a partir do seu reflexo condicionado se prepara para atirar em qualquer alvo, sem saber exatamente(e por que) está atirando. Trata-se assim de um anti-faroeste, pois ao subverter a lógica tradicional dos mocinho e dos bandidos, da ordem e do crime, o filme funciona enquanto uma reflexão sobre quem manipula os fuzis(e o mais importante, a mando de qual classe social). Subentende-se que os fuzis poderiam estar nas mãos dos explorados, de homens desajustados como o curioso personagem Gaúcho, um ex-soldado e motorista de caminhão, que apesar do seu ceticismo possui um certo nível de consciência política inconformista. Revela-se assim por meio da estética cinematográfica um momento histórico em que as guerras de guerrilhas funcionavam enquanto orientação política que fascinava muitos comunistas brasileiros(ainda que a luta armada no país seria um fato posterior, no fim da década de sessenta, quando grupos guerrilheiros emergiam para combater a ditadura militar).
Penso que para libertar o cinema atual do maniqueísmo, filmes como Os Fuzis, precisam ser devidamente assistidos e estudados. Que este produto notável do Cinema Novo sirva de exemplo para que os cineastas brasileiros de hoje não imitem os gringos com seus mocinhos e bandidos, mas usem suas câmeras para desvendar a trágica realidade brasileira.
Lenito
FILME: Os Fuzis
ANO: 1963
DIREÇÃO: Ruy Guerra
LOCAL: Museu da Imagem e do Som de Campinas
HORÁRIO: 19:30
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